Como será o amanhã? Cineasta Pedro Carcereri responde
Leia o nono texto da seção “Como será o amanhã?” com utopias para tempos distópicos
Quando os dias voltarem a ser luminosos eu vou te ver em meus sonhos
por Pedro Carcereri
Sonhei com você, mas não era ontem. Era agora. Com o tempo esquecemos que sonhar era tão bom. Encontramo-nos novamente naquela praia de águas calmas que sempre nos encontrávamos, podia contar de mês em mês. Mas depois veio aquele período em que podíamos nos forçar a esquecer.
Alguns relatos já citavam a volta dos sonhos à pessoas de vários pontos do planeta. Ninguém próximo a mim tinha conseguido voltar a sonhar. A pandemia que esfacelou as imagens noturnas causou-nos incredulidade no início, mas com toda a população mundial infectada restaram apenas lamentos e lembranças.
Já não sei se os lamentos pararam ontem ou hoje, não sei dizer, estava em suspenso onírico entre os dois. Mas não havia tristeza ou recordações, eu estava realmente sonhando com você, deitada comigo na praia como sempre fazíamos. Com medo de queimar os pés na areia e que a correnteza nos levasse para longe dos nossos pertences. Você queria tomar mais uma cerveja eu queria ir embora como sempre, ansioso demais para aproveitar. Era você. Era a praia. Era sonho, com certeza.
As melhores formas de sonhar estavam de volta. A eterna sensação de que os pés podem sair do chão a qualquer momento ou que posso virar o rosto e sair da praia e me colocar no meio de uma grande avenida ou conversar durante horas com a minha avó [da forma como combinamos]. Dos tenebrosos tempos sem sonhar me recordo de manhãs de cansaço e dias em alerta e medo. Das noites lembro apenas da grande escuridão que separava o fechar e o abrir dos olhos.
O vento daquela madrugada lambeu as plantas da casa e entrou no quarto, movendo meu lençol para longe. Deve ter carregado consigo as enfermidades que doeram em meu corpo durante todo esse tempo em que ninguém sonhou. Reencontrei minha mãe dando banho em minha filha, coisas que a memória enferma apagou pelo período em que o corpo humano mantinha-se enclausurado em si mesmo, sem chances de fechar os olhos se conectar com os que desejam sonhar junto.
Acordei e o dia estava claro. Cortinas abertas e a luz do sol entrava pela janela aquecendo minhas pernas. Pisquei duas vezes e ouvi as vozes que vinham da cozinha. Eu realmente tinha sonhado, depois de mais ou menos dois anos que tudo começou. Fui até a cozinha e meus companheiros de casa estavam ali, comentando sobre as primeiras notícias de uma terça-feira óbvia de trabalho, estudo e compromissos. Um sorriso brotou em meu rosto
assim que lhes disse a palavra sonho e as tantas perguntas que me inundavam sobre como tinha sido, se eram os mesmos de antes da doença, se encontrei pessoas queridas, se fiz coisas que não devia fazer desperto. Eu só consegui dizer que tinha sonhado com você. Mas não era ontem. Hoje sonhei com você.
De pronto entendi que deveria calçar os sapatos – que estranhariam meu pés a cada pisada – e sair para caminhar. Meus olhos agora estavam abertos, sem aquela película de morbidez da realidade que só os sonhos conseguem tirar. Pelas ruas algumas pessoas sorriam, com a boca relaxada e os olhos livres. Provavelmente sonharam essa noite. Deixaram explodir dentro de si todo o descontrole soporífico que o instinto perdeu para a sociedade da produtividade e da vigília.
Caminhei os poucos quarteirões que agora separam sua casa da minha e parei do outro lado da calçada, de onde eu podia ver o portão do seu prédio. Respirei e segui, continuei sorrindo e apreciando a sensação de tudo na vida ter mudado, mas que ainda possamos voltar a nos encontrar em meus sonhos.
Pedro Carcereri é escritor, diretor, produtor e curador. Bacharel em Artes e Design e mestre em Artes, Cultura e Linguagens pela Universidade Federal de Juiz de Fora. É autor dos curtas “Modorra”, “Maria Cachoeira”, do documentário “Último Toque” e do romance “Sob o Trópico de Capricórnio” lançado pela Editora Letramento. É natural do Rio de Janeiro e vive e trabalha em Juiz de Fora.
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