No Dia dos Professores, educadores refletem sobre a arte de ensinar a arte

Entre o gesto, o som e o movimento, educadores revelam como o ensino artístico se torna um ato de criação, escuta e transformação


Por Mariana Souza*

15/10/2025 às 07h00

Celebrado nesta quarta-feira (15), o Dia dos Professores convida não apenas à gratidão, mas também à reflexão sobre histórias, desafios e, também, a arte de ensinar a arte – um ofício que exige sensibilidade, entrega e uma escuta constante do mundo. Em entrevista à Tribuna, artistas contam como foi transbordar a arte para além da própria atuação e contribuindo para a formação de novos talentos.

Para o professor da Fact! Formação Artística e Coletivo Teatral, Phill de Orixalá, ensinar arte é mergulhar em processos que transitam entre o visível e o invisível. Em certos momentos, é preciso lidar com o objetivo e o tangível – a técnica que pode ser observada, registrada e transmitida entre gerações. Em outros, trata-se de algo mais sutil: o que não se ensina diretamente, mas se revela no caminho, naquilo que é subjetivo, pessoal e quase espiritual, explica ele.

Phill acredita que cada professor carrega uma identidade pedagógica própria, uma persona que emerge em cena para inspirar e encantar os alunos. “O processo de ensino é uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que orienta, o educador também aprende e descobre novas formas de olhar para a arte, para o mundo e para si mesmo”.

Para ele, há algo especial no ato de criar e compartilhar arte: entregar uma obra, ouvir o aplauso de uma plateia, sentir o cheiro das tintas sobre a tela. É essa experiência viva e sensorial que, segundo Phill, os arte-educadores devem transmitir – o valor do “aqui e agora”, dos múltiplos sentidos que a arte desperta.

Também professor a Fact!, Paulo Monttero relata que a relação com a arte também começou cedo. São mais de 25 anos dedicados ao teatro, espaço que ele define como um território de descobertas e pertencimento – onde encontrou voz, identidade e propósito. Com o tempo, percebeu que seu desejo ia além do palco: queria compartilhar o que o teatro havia lhe ensinado. “Ensinar arte nasceu desse desejo de multiplicar o que ela me transformou.”

Paulo Monttero Arquivo Pessoal
‘Tudo o que ensino vem da prática, assim como toda prática é aprimorada pela vivência’, afirma o professor de teatro Paulo Monttero (Foto:Arquivo Pessoal)

Paulo acredita que ensinar e aprender são movimentos inseparáveis. “Tudo o que ensino vem da prática, assim como toda prática é aprimorada pela vivência do que ensino”, diz. Para ele, a sala de aula é uma extensão do palco – um espaço de trocas, tentativas e reinvenção constante.

Durante o período em que viveu em São Paulo, ele se especializou em Marketing e concluiu o mestrado em Comunicação, experiências que ampliaram sua compreensão sobre carreira, profissionalização e gestão artística. Hoje, busca transmitir esse conhecimento aos alunos, reforçando a ideia de que a arte deve nascer da paixão, mas também requer consciência e planejamento.

“Todos os alunos trazem inúmeras descobertas, mas acredito que o maior ensinamento diário é não esquecer o que eu busquei há 25 anos. Isso me torna cada vez mais responsável com o sonho que eles carregam.”

Para ele, a arte é um território que acolhe diferenças e contradições, permitindo ao ser humano reconhecer-se no outro. “Dentro ou fora da escola, a arte é um exercício de humanidade que afeta todas as áreas do indivíduo em sua relação com o mundo”, afirma.

Ao refletir sobre os desafios contemporâneos, Paulo destaca o papel do tempo e do erro no aprendizado. “A arte é o oposto da pressa, porque exige o tempo do processo, o tempo de tentar, aprender e também de errar. O erro é o que mais ensina. A tecnologia pode e deve fazer parte da transformação, mas o desafio continua sendo o imediatismo. A sensibilidade nasce quando o aluno compreende que a pausa é necessária pra refletir e criar.”

Entre tantas histórias que carrega, ele recorda com carinho a de uma aluna que sonhava em participar das peças do grupo. O talento era evidente, mas o medo de falhar a impedia de seguir. Ele conta que, com o tempo, ela entendeu que o erro faz parte do processo de aprendizado e essa descoberta transformou sua postura em sala. Hoje, é uma das artistas de maior destaque nas produções do grupo, resultado da confiança que conquistou para expressar todo o seu potencial.

O som que ensina a escutar

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‘Ensinar arte é, antes de tudo, ensinar humanidade e, como consequência, contribuir para uma vida melhor em sociedade’, destaca o professor de piano Guilherme Veroneze (Foto: Arquivo Pessoal)

Guilherme Veroneze conta que sua relação com a música começou ainda na infância. Aos 7 anos, iniciou os primeiros estudos de piano e, aos 14, já fazia apresentações em quermesses na cidade natal, Monte Alto, no interior de São Paulo. Pouco tempo depois, formou uma banda com amigos e passou a tocar em diferentes grupos, consolidando ali o início de sua trajetória musical.

Ao relembrar o percurso, ele explica que, após mudar-se para Juiz de Fora, há cerca de 20 anos, continuou atuando na cena musical. Participou de diversos grupos, especializou-se em música instrumental e, desde 2020, se dedica ao trabalho como compositor e professor de piano.

Para ele, a técnica é um elemento essencial na formação de qualquer músico, pois define a relação do artista com o instrumento. Ele costuma dizer que “não basta imaginar um som bonito – é preciso ter domínio técnico para torná-lo real”. A técnica, afirma, é o que permite explorar todas as possibilidades do instrumento e alcançar o som desejado. Pianista disciplinado, Guilherme mantém o estudo técnico como parte de sua rotina diária e faz desse exercício uma constante em suas aulas.

Mesmo reconhecendo a importância da técnica, ele ressalta que a música vai muito além dela. Para ele, a arte é, antes de tudo, uma forma de expressão. Por isso, considera fundamental o desenvolvimento da expressividade: conhecer diferentes estilos, repertórios e modos de interpretação. Mais do que isso, acredita que cada aluno deve encontrar a própria voz no instrumento – o “seu jeito de se dizer por meio do som”.

Nas aulas, Guilherme percebe que as questões que surgem nem sempre são apenas musicais. Muitas vezes, refletem a personalidade e as vivências dos alunos. Quando alguém se cobra demais, observa, essa postura geralmente se repete fora da sala de aula. Da mesma forma, a dificuldade em lidar com o erro ao tocar o piano costuma espelhar comportamentos do cotidiano. No fim das contas, ele acredita que estudar um instrumento é também um modo de se confrontar com aspectos mais amplos da própria vida.

O professor considera essencial conhecer o aluno e compreender o caminho que ele está trilhando ou aquele que gostaria de seguir. Reconhece o valor dos cursos formais de música, mas ressalta a importância de entender o que realmente faz sentido para cada pessoa, de acordo com seus sonhos e objetivos. Assim, leva para as aulas esse modo de ver e viver a arte: respeita a tradição do piano, mas procura sempre incentivar os alunos a encontrarem o próprio caminho dentro dela.

Para ele, cada aluno é único. Guilherme se diz impressionado com o quanto aprende a cada encontro, afirmando que, muitas vezes, sai das aulas energizado e estimulado, especialmente quando um aluno apresenta uma forma de ver determinado assunto sob um ângulo novo. Outro aprendizado, destaca, é o de “respeitar o tempo de cada um” – compreender que cada pessoa carrega suas próprias facilidades e dificuldades. “Cabe a mim entender, respeitar e ajudar, principalmente nos pontos de maior desafio”, resume.

Mais do que técnica, Guilherme enxerga na arte um poder transformador. Acredita que ela desperta o ser humano para além do trivial e cumpre um papel essencial na sociedade ainda que, muitas vezes, seja tratada como algo secundário ou de menor importância. Para ele, a arte é uma forma de revelar o que há de mais genuíno em cada pessoa. “Ensinar arte é, antes de tudo, ensinar humanidade e, como consequência, contribuir para uma vida melhor em sociedade.”

O movimento que ensina a sonhar

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‘A educação por meio da arte é uma das grandes saídas para o futuro’, avalia a professora de dança Silvana Marques (Foto: Leonardo Costa)

Desde muito cedo, Silvana Marques descobriu que a dança seria parte essencial de sua vida. Ela conta que esse encontro aconteceu entre os 6 e 8 anos, quando ouviu, pela primeira vez, um disco de Tim Maia trazido pelo irmão mais velho. A voz marcante do cantor, os acordes e a melodia despertaram nela o desejo de traduzir em movimento tudo o que sentia ao ouvir aquela música. Foi ali, ainda sem saber, que nascia sua trajetória com a dança – uma paixão que se transformaria em profissão, em arte e em forma de educar.

Embora a dança sempre tenha sido sua grande paixão, Silvana explica que a docência não surgiu de um desejo inicial, mas de uma necessidade. Ensinar foi a forma que encontrou de continuar dançando e vivendo da arte. Ela lembra que, no Brasil, apesar da existência de alguns grupos profissionais, ainda é pequeno o número de pessoas que conseguem se sustentar apenas com apresentações nos palcos.

Para seguir o próprio caminho, cursou Educação Física, uma escolha que, segundo ela, nasceu da ausência de cursos de dança em Juiz de Fora. Estudar o movimento sob a ótica do corpo foi sua maneira de se aproximar do universo que realmente a inspirava. “A Educação Física veio justamente porque era o que mais se assemelhava ao que eu desejava”, recorda.

Silvana considera a arte fundamental para o ser humano. Gosta de lembrar que, como já diziam Nietzsche, Ferreira Gullar e tantos outros poetas, “a vida, sozinha, não basta”. Para ela, a arte é libertadora – é o que faz com que as pessoas tenham uma visão mais crítica da realidade e, ao mesmo tempo, as encoraja a sonhar mais alto, acreditando que podem transformar o próprio destino.

Uma das experiências mais marcantes de sua trajetória foi a participação no programa social Poupança Jovem, criado com o objetivo de combater a evasão escolar no ensino médio por meio de atividades artísticas e incentivo financeiro. Em Juiz de Fora, a iniciativa começou em 2009 e beneficiou mais de 23 mil estudantes. Os jovens recebiam uma poupança de R$ 3 mil ao final do curso, desde que mantivessem boa frequência e participassem de atividades complementares, entre elas, dança, teatro, música, circo e grafite.

A professora de dança recorda que o projeto foi transformador. Muitos alunos precisaram deixar as aulas para trabalhar, mas outros permaneceram e seguiram o caminho artístico. Alguns, inclusive, tornaram-se professores de dança, como o ex-aluno Lorran Oliveira, que conheceu a arte por meio do programa, cursou Educação Física, descobriu o circo e seguiu carreira acadêmica até o mestrado na Unicamp. “Ele enxergou nas artes corporais uma saída, um caminho para a vida dele”, conta com orgulho.

Segundo a professora, os adolescentes que chegavam às atividades do programa costumavam ser introspectivos, apáticos, com dificuldade de se expressar. No entanto, a convivência artística – marcada pelo toque, pelos olhares e pelos movimentos compartilhados – provocava mudanças visíveis em poucos meses. Ao final de três anos, o projeto já reunia cerca de 150 jovens divididos entre os turnos da manhã e da tarde, em um período que Silvana descreve como “anos maravilhosos”.

Ela acredita que a transformação proporcionada pela arte é algo inegável. Para Silvana, “a educação por meio da arte é uma das grandes saídas para o futuro”. Afirma que o modelo tradicional de ensino, ainda engessado e ultrapassado, contribui para a evasão escolar e precisa ser repensado. “A metodologia deve ser atualizada para trazer o jovem de volta ao aprendizado  e eu acredito profundamente que a arte é esse caminho.”

Sonhos e desafios de quem ensina arte

Para Silvana, a escola ideal é aquela que integra a arte ao processo educativo. Ela defende que toda instituição de ensino deveria ter em sua estrutura núcleos de dança, teatro e artes visuais, tornando essas linguagens parte essencial da formação dos estudantes. Para a professora, é fundamental que os jovens conheçam e reconheçam grandes nomes das artes, de Di Cavalcanti a Renoir, de Carlos Bracher a Dnar Rocha, construindo referências que dialoguem com diferentes tempos e culturas.

Ela reconhece que um dos maiores obstáculos está na desvalorização do ensino artístico. Muitas pessoas, observa, não percebem que a técnica aprendida em uma oficina de dança, teatro ou qualquer outra linguagem acompanha o aluno por toda a vida e representa um diferencial imenso, inclusive fora do campo artístico. Ela acredita que toda pessoa que vivencia a arte passa por um processo profundo de transformação, mas lamenta que os profissionais da área ainda enfrentem o descaso e a falta de reconhecimento.

Além da desvalorização, Silvana aponta as disputas internas e a dificuldade de manter uma formação contínua como grandes desafios. A arte, lembra, está sempre em movimento e transformação e, por isso, o aprendizado precisa ser constante.

Guilherme compartilha visão semelhante. Para ele, o Brasil é um país de imensa riqueza cultural, repleto de manifestações artísticas que compõem um verdadeiro patrimônio admirado em todo o mundo. Ainda assim, ele lamenta que, apesar do reconhecimento internacional, as dificuldades para viver de música no país sejam muitas.

Ele defende uma mudança de olhar por parte da sociedade, destacando que é comum ouvir pessoas elogiarem a cultura europeia – suas orquestras e teatros -, mas que, ao mesmo tempo, criticam políticas públicas voltadas à arte no Brasil. “Enquanto a arte não for vista como um bem nacional, é difícil que algo mude”, reflete. Para ele, a transformação começa na base: no ensino. “É na educação que se projeta uma sociedade mais sensível à arte e mais capaz de fazer dela um meio digno de vida”, analisa.

“Para se ensinar arte no Brasil hoje é preciso saber que nem sempre poderá contar com o apoio público”, completa Phill. Ele reforça a necessidade de reconhecer a arte como um direito humano fundamental, e não como um luxo ou adereço cultural. Ele lembra que é por meio dela que o ser humano se expressa, comunica emoções, alivia tensões e dá forma ao que sente. Segundo o professor, “vivemos tempos em que arte e entretenimento se confundem, já que ambos nasceram de uma mesma origem: o desejo de emocionar”. Ainda assim, ele observa que, na era da produção acelerada, é cada vez mais raro valorizar o trabalho artesanal e o gesto humano por trás da criação. “É preciso lembrar o valor do que é feito à mão, do que é desenhado por olhos reais e concebido por mentes que sentem, riem e choram.”

Já para Paulo, o maior desafio está em equilibrar paixão e gestão. Ele defende que é preciso ensinar que cultura também é profissão – uma atividade que requer planejamento, visão de carreira e responsabilidade. Essa consciência, acredita, ajuda a mudar a forma como a sociedade compreende o trabalho artístico. Paulo aponta ainda a falta de estrutura e apoio aos profissionais que ensinam arte como um obstáculo central.

Mas apesar dos desafios, Paulo reflete que “dentro ou fora da escola, a arte é um exercício de humanidade que afeta todas as áreas do indivíduo em sua relação com o mundo.”

*Estagiária sob supervisão da editora Gracielle Nocelli

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