Entre sopros e passos, o samba de gafieira dança contra o tempo
Com origem popular e alma orquestrada, o samba de gafieira preserva sua força ancestral e enfrenta obstáculos para permanecer vivo em Juiz de Fora

“É a alegria da carne. A possibilidade de sambar junto, de interpretar e se conectar com o outro. Uma das danças mais lindas que temos.” Assim descreve a professora de dança e dona do Estação Cultural, estúdio de dança em Juiz de Fora, Silvana Marques, o samba de gafieira – arte nascida nos salões do Rio de Janeiro que ainda encontra respiro em terras juiz-foranas.
Fluida e elegante, a gafieira não se limita ao corpo que se move. É música em movimento, herança popular que resiste entre compassos e memórias. Tem origem nas décadas 1930 e 1940, quando o samba se vestiu de big band e se abriu às orquestras, misturando sopros, guitarras, pianos e bateria. Diferente do samba de roda, mais percussivo, o de gafieira ganhou brilho de metais e arranjos melódicos. “É um samba projetado na perspectiva das grandes orquestras americanas, adaptado à dança de par”, explica o professor e pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Carlos Fernando.
Mas antes de ser espetáculo, o samba de gafieira é raiz. Criado e cultivado pela comunidade negra, carrega ancestralidade em cada gesto. Seus passos são corpo que resiste, memória que dança. “É, acima de tudo, uma dança de resistência”, reforça Silvana, lembrando que sua origem está nos clubes frequentados majoritariamente por negros, em tempos de segregação evidente.
No salão, no entanto, o mundo se reinventava: pouco importava classe, escolaridade ou endereço. Importava dançar – e dançar bem. Essa democracia, como lembra Silvana, sempre foi um dos encantos da gafieira.
Até o próprio nome nasceu de um gesto inesperado. Durante o carnaval, um colunista social negado à entrada gratuita num clube decidiu vingar-se em palavras: chamou o espaço de “gafieira”, insinuando um amontoado de gafes. O insulto virou identidade. O dono rebatizou a casa como “Gafieira Elite”, e o termo atravessou o tempo para batizar o gênero.
O desafio e o encanto de dançar em par

Exigente, a dança pede dedicação. “É uma dança a dois, bastante complexa, que exige muitos anos de estudo para que se consiga executar os movimentos com fluência e leveza. Justamente por isso, é uma dança desafiadora, mas também maravilhosa,” ensina Silvana.
Por isso, nem sempre atrai iniciantes ou produtores locais. “É uma dança que exige estudo: pelo menos dois anos de prática para que alguém realmente se sinta dançando com fluência. Mas esse esforço vale a pena, porque o samba de gafieira carrega uma ancestralidade profunda, uma ligação com o corpo, com o espaço, com o peso e com a fluidez dos movimentos. É algo incrível.”
Nos bailes, o cenário é outro obstáculo. “Nós até tínhamos alguns bailes na cidade, mas dificilmente eram de dança de salão. Acabavam sendo bailes de forró. Já os bailes realmente voltados para a dança de salão enfrentam uma dificuldade: os donos de clubes costumam repetir uma ideia que considero bem equivocada, de que ‘quem dança não bebe, não consome’. Por isso, eles enchem o espaço de mesas e deixam apenas uma pista pequena, quase simbólica, para a dança. E aí eles fazem o negócio deles. Quem acaba organizando bailes mais adequados somos nós, das escolas, porque entendemos que um baile de dança de salão é um espaço onde se tocam todos os ritmos.”
Tradição que se renova

No repertório, nomes como Raul de Barros, Orquestra Tabajara e o juiz-forano Geraldo Pereira ajudam a preservar a memória da gafieira. “Uma clássica que eu gosto muito é ‘Na batida do samba’, que é uma composição do servidor Araújo, que foi um grande maestro. É uma gravação da década de 1950 com a Orquestra Tabajara. A gente pode dizer que o Geraldo Pereira também teve algumas coisas gravadas nessa forma de gafieira, muito próprio desse samba sincopado”, detalha Carlos Fernando.
A professora, por sua vez, lembra que a dança não é estática. “A dança é vida. E, como a vida, ela nunca fica parada no tempo: vai se modificando. Claro que precisamos preservar a movimentação essencial. É como no vôlei: você não consegue jogar se não souber fazer uma manchete, um toque ou um saque. Na dança é a mesma coisa – existem movimentos básicos que sempre estarão presentes, servindo de ligação.”
E, como a vida, a dança também se renova em linguagem e papéis. “Hoje, por exemplo, já não usamos mais os termos ‘cavalheiros e damas’. Agora falamos em ‘condutor e conduzido’, ou ‘líder e follower’. Além disso, há a possibilidade de compartilhar a condução: quem conduz e quem é conduzido podem trocar de papel livremente, sem julgamentos”, informa.
Silvana defende que a gafieira deveria estar nas escolas, ser apresentada às crianças desde cedo. Mas reconhece: “Hoje vemos uma grande defasagem, especialmente entre os homens – há muito mais mulheres procurando aprender. Além disso, os jovens acabam se afastando, em grande parte por causa da sedução exercida pelo forró.”
Ainda assim, a professora guarda consigo a lembrança do seu próprio encontro com a dança: “Eu sempre quis muito aprender o samba de gafieira, mas aqui na cidade eu não via essa possibilidade. Ele representou, para mim, um encontro artístico.”
A paixão, que nasceu como um sonho pessoal, se espalhou pela família. Lia, sua filha, trilhou o caminho da música e se tornou professora de forró. Já Davi, sempre ao lado da mãe, encontrou na dança de salão uma forma de expressão e alegria compartilhada.
Silvana conta que Davi tem Síndrome de Down e que, com amor e passos compassados, a dança ajudou em sua formação e seu desenvolvimento. Orgulhosa, ela lembra que o filho sempre a acompanhou, transformando cada ensaio em aprendizado e cada compasso em conquista. Hoje, ele não apenas segue seus passos, mas os transforma em música própria.
Assim, no balanço da gafieira, mãe e filho dançam juntos uma coreografia que ultrapassa o salão. É a dança que se converte em afeto, é o ritmo que se faz vida. Porque, no fundo, o que eles compartilham não é apenas o movimento dos corpos, mas a poesia silenciosa de um amor que dança.
*Estagiária sob supervisão da editora Gracielle Nocelli