Saúde financeira de municípios da região é motivo de preocupação
A grande maioria dos municípios não tem renda para bancar as próprias despesas, avalia especialista

“Não conseguimos fazer nada para além do que há na reserva municipal, então, o impacto deste decreto no dia a dia da população, atualmente, é mínimo. A questão é que o estado de calamidade financeira garante à Prefeitura respaldo com o Tribunal de Contas em caso de não cumprimentos em índices em áreas como saúde e educação”, revela o prefeito de Guarani, Emerson Patrick (Republicanos). O cenário financeiro das cidades do interior do Brasil é preocupante – e na Zona da Mata Mineira não é diferente. No dia 24 de setembro, a Prefeitura de Guarani – município localizado a cerca de 70 quilômetros de Juiz de Fora – anunciou estado de calamidade financeira, decretado no dia 11 do último mês. A princípio, segundo o prefeito, essa “manobra” não deve causar grandes impactos ao cotidiano dos moradores, mas, com a revelação, os olhares se voltam para uma dura realidade existente na região.
Ao decretar estado de calamidade financeira, as Prefeituras tomam uma decisão administrativa unilateral, que busca principalmente comunicar à sociedade as dificuldades econômicas locais, como explica a Associação Mineira de Municípios (AMM). Além disso, o decreto também prevê a adoção de medidas de contenção de despesas, proibição de novas obras e investimentos, além da suspensão de novas contratações em órgãos públicos.
A AMM informa, ainda, que, apesar de ser uma prática utilizada como respaldo em eventuais frustrações de receitas ou infrações à Lei de Responsabilidade Fiscal, a validade desses decretos não é garantida constitucionalmente em lei. Apenas o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE-MG) é capaz de decidir se a calamidade financeira será acatada e validada, o que torna a prática um ato de risco para a gestão municipal.
No caso de Guarani, inclusive, o decreto ainda não havia sido encaminhado ao TCE-MG, levantando dúvidas sobre qual será a resposta. A Tribuna procurou o órgão, que não se posicionou até o fechamento desta edição.
Uma ‘decisão política’ em um estado de calamidade
A Tribuna teve acesso ao documento do decreto de estado de calamidade financeira, em que a Prefeitura de Guarani apresentou as dívidas herdadas pela atual gestão – que assumiu a administração da cidade após as eleições de 2024. Somados os montantes, o Município deve para diferentes esferas quase R$ 3,5 milhões, além dos quase R$ 100 milhões de déficit atuarial ao Regime Próprio de Previdência Social do Município (GuaraniPrev). “Estamos em um cenário de muitas incertezas. Para se ter noção, a Prefeitura desembolsa praticamente 15% do orçamento para essas autarquias, que é, por exemplo, o mesmo índice de investimento mínimo na saúde”, aponta Emerson Patrick.
Ainda conforme o prefeito de Guarani, propostas de reforma tributária e da previdência serão votadas na Câmara da cidade e devem ser aprovadas nos próximos meses. A expectativa, ainda segundo ele, não é de recuperar a saúde financeira do município até o fim da gestão, tendo em vista o grau de complexidade dessa operação, mas tentar, a partir dessas ações, retomar minimamente a economia da cidade.
Para a cientista política e coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Política Local (Nepol) do Instituto de Ciências Humanas (ICH) da UFJF, Marta Mendes, o verdadeiro efeito do estado de calamidade financeira é, sobretudo, político. “Acredito que essa é uma maneira de as gestões não se responsabilizarem. Há um efeito político de chamar atenção do Estado, mas é arriscado e pode não ser efetivo.” A fala de Marta ajuda a explicar o porquê de os municípios, muitas vezes, optarem por não utilizar esse recurso, mas não significa que eles não enfrentem desafios quando o tema é dinheiro em caixa.
Dificuldade financeira na região é histórica, mas faltam dados concretos
“A ausência de regulamentação legal para o decreto de calamidade financeira, somada à descentralização de sua publicidade e à indisponibilidade de dados públicos financeiros em tempo real, inviabiliza a apresentação de um estudo completo sobre a atual situação econômica dos municípios mineiros em 2025”, destaca a AMM. De acordo com a entidade, a única informação que pode ser mensurada no ano fiscal atual são as transferências constitucionais recebidas pelos municípios, mas que não apresentaram queda nos repasses.
No entanto, de acordo com a cientista política Marta Mendes, a grande maioria dos municípios interioranos no Brasil têm sua economia baseada no setor público, dependendo – quase exclusivamente – de transferências vindas dos Governos federal e estadual, o que auxilia no inchaço de servidores contratados pelas administrações locais.
“Quase 70% dos municípios do país não têm mais de 20 mil habitantes. Então, são cidades pequenas e que não possuem uma economia dinâmica e diversificada. Os municípios possuem baixa autonomia fiscal e a grande maioria deles não tem renda para bancar as próprias despesas”, argumenta Marta. A dificuldade financeira é histórica e, mesmo com a falta de dados concretos, as análises apontam que a economia é um tópico sensível não só para Guarani, mas também para outros municípios da Zona da Mata.
Revisar o pacto federativo pode ser solução para o interior
As Prefeituras brasileiras têm uma demanda histórica pela revisão do pacto federativo, conforme a Associação Mineira de Municípios. O Senado Federal define pacto federativo como o conjunto de regras que trata das relações entre os entes da Federação: União, estados, Distrito Federal e municípios. Além disso, a Constituição de 1988 também define as competências exclusivas de cada um e suas atribuições em comum. Cada ente tem autonomia para tomar decisões em suas áreas, mas todos devem agir em cooperação pelo desenvolvimento do país.
Por outro lado, o discurso dos municípios sobre o pacto federativo aponta para um desequilíbrio nas fontes de recursos da União e dos demais entes. “As Prefeituras estão se queixando sobre a falta de recursos há anos. A reivindicação é de que os municípios gastam muito mais do que o mínimo constitucional para ser gasto na área da saúde, por exemplo”, afirma Marta Mendes. Conforme a especialista, as gestões reivindicam, principalmente, que a quantia repassada aos municípios pela União não é suficiente para cobrir problemas estruturais em diferentes áreas.
Conforme o prefeito de Guarani, Emerson Patrick, a esperança é de que, com a reforma tributária nacional, haja uma maior flexibilização nos repasses de recursos federais: “Precisamos de uma legislação moderna.” Ele lamenta também que a União, historicamente, aumenta a carga de atribuições dos municípios, sem a devida compensação financeira. “A conta não está fechando. Há um desequilíbrio para municípios que não são industrializados, que têm, por exemplo, na pecuária leiteira uma fonte importante de renda, como Guarani.” E isso não se aplica somente àquele município. Um levantamento realizado pela Embrapa, em 2013, mostra que a Zona da Mata Mineira e o Campo das Vertentes são responsáveis por quase 20% da produção de laticínios do estado, colaborando com a análise de que a fonte de renda de vários municípios da região não é diversificada.
Entretanto, Marta pede cautela antes de defender “cegamente” uma mudança no pacto federativo. “Existe uma razão para ser como é. Somos um país continental e as Prefeituras possuem contextos diferentes. A ideia é que o pacto federativo tente ‘disciplinar’ a atuação dos municípios e garanta o alcance de certas metas nacionais. Existe um temor, portanto, de que essa revisão possa gerar uma desigualdade ainda maior. Isso porque existem municípios mais aptos do que outros para garantir a eficiência dos recursos. É difícil prever o que aconteceria se houvesse uma descentralização deles.”
*Estagiário sob supervisão da editora Fabíola Costa
Tópicos: economia / política / zona da mata