Como será o amanhã? Dramaturgo Rafael Coutinho responde
Leia o décimo terceiro texto da seção “Como será o amanhã?” com utopias para tempos distópicos
A ilha das borboletas
por Rafael Coutinho
Aqui é escuro. Aqui é escuro e eu também sinto a respiração de uma forma diferente. Não é como ter narinas, pulmões e a boca, pra usar quando se cansa. Assumi a forma de um inseto, uma lagarta. Consciência humana, forma de inseto. Bem, na real sou agora uma crisálida. Uma pupa, um casulo.
Não é alguma coisa muito bem escolhida, é compulsório. O destino é ser borboleta. Todas as lagartas só pensam nisso, só trabalham nisso, ilha das borboletas, você só consegue se for voando, e se eu não quiser ir pra lá? Replico, e só recebo de volta um você quer morrer? Nada gentil.
A verdade é que da memória que tenho de mim, já havia muitas cores em minha pele e eu adorava o caminhar: sentir nas minhas patinhas as texturas das folhas e se elas eram firmes o suficiente para eu não cair. Mas é isso, a tal lenda da ilha das borboletas faz a gente largar tudo e compulsoriamente nos isolarmos para virarmos um troço voador.
Tá bem que não é só a lenda, a gente faz porque todo mundo fez esse caminho, todo mundo virou borboleta e voou. Sabe que não faz sentido pra mim? Por que um inseto que voa precisa de uma ilha, pra chão firme a gente já era lagarta.
Aqui não tem ninguém, aqui não tem folhinhas pra gente comer e nem pisar, não tem ar puro, não tem cor. Só tem a esperança de sair. Só a esperança de voar. E se eu não souber voar? E se a minhas asas não forem tão boas assim? Elas são enormes, talvez pesadas, nunca me preparei pra carregar minha locomoção nas costas, as pernas são mais fáceis, dão apoio, sustentam.
Eu devia desistir. Sair desse isolamento e tentar virar bicho da seda. Sempre me encantaram. Se eu tivesse pensado nisso antes…
Tá aí o “se”. “Se”, odeio essas duas letras que abrem um abismo nas nossas vidas, essa condição que, quando a gente usa para o passado ela é mais uma condenação. E quando a gente usa para o futuro, incerteza. Ingressar na vida de bicho da seda não é assim e essa possibilidade tá tão repleta de “se” quando virar borboleta.
Se, se, se, se, se, se, se… Se eu continuar, vai passar. Se eu continuar vou sair dessa escuridão. O problema é que o “se” não dá o “quando”. Enquanto eu penso, mais me aproximo da saída, mas não sei o quanto mais falta.
Maldita vida de crisálida! Há quanto tempo ninguém pronuncia o meu nome? Nomes são assim, se ninguém os fala, eles não têm utilidade. Mas quanto a isso providenciei uma solução. Inscrevi meu nome nas bordas desse casulo, como aqueles que talham a pedra, uma tatuagem dessa fase de pupa. Digo meu nome a cada despertar. Não bem o meu nome, mas o pronome pessoal. Eu.
Mas se eu fosse me juntar aos bichos da seda, quem sabe, quem sabe pronunciariam o meu nome e eu vários outros dos meus companheiros que ali vão estar. Desse mal não vou sofrer, vou criar minha seda, produzir, colocar pra fora, não me enrolar nos pensamentos como nesse escuro casulo.
É isso, talvez com força eu possa me balançar e cair, se eu me recuperar da queda, vou até os bichos da seda, vou e vou dizer que aquela vida que é pra mim, sempre me chamou atenção. Vou dizer que a forma de pupa é imposição, que fui pressionado a estar assim, que não é minha culpa, e vão dizer para mim que não sabem não, mas eu vou insistir, eu vou insistir e dar razões na mesma velocidade com a qual penso nessa prisão. Sim, nessa prisão. Vou dizer isso, não fiz nada pra estar preso, não mereço esse lugar. A compaixão é uma ótima estratégia de comunicação, é assim que vão entender que eu posso estar ali. Um ou outro vão questionar minhas escolhas, quem não quer virar borboleta? Vão dizer, e eu vou responder, eu não quero, eu não quero, e ainda vou completar que é um inferno o processo, ninguém entende, vou dizer a eles que é muito bonito ver as borboletas, mas isso de ser pupa, isso de estar confinado, ninguém quer.
Com sorte vão me aceitar. Vão me aceitar, na minha forma de pupa, e eu vou estar finalmente livre.
E a ilha das borboletas. A ilha das borboletas vai continuar existindo. No sonho de todos, mas dentro do meu “se”. Será que sou capaz de aguentar? – Essa consciência humana que a crisálida me deu é uma maldição – Será que vou saber renunciar a possibilidade?
Não sei se a ilha das borboletas é verdadeira, não sei como é uma vida de pupa que não quer ser uma borboleta – não conheço muitas, nenhuma na verdade – mas sei que a ilha das borboletas vai existir, vai existir nos sonhos das lagartas, vai existir na esperança de quem está no casulo esperando a metamorfose. E eu… E eu com a minha dúvida, nunca vou poder voar até lá pra conferir a veracidade.
Espero. Mais um dia vou talhar nas paredes desse casulo, e amanhã novamente e amanhã novamente e amanhã novamente até que eu voe.
É escuro aqui, não tem vento. Mas ganhei uma consciência humana, e com ela escrevo palavras para o agora que não vão me servir quando eu tiver minhas asas. Se a ilha das borboletas não existir…
Procuro outra.
Rafael Coutinho é dramaturgo e diretor, autor de, entre outros, “Estação dos passageiros invisíveis”, “Minha morte” e “Cinco ou seis graus”. Nasceu, vive e trabalha em Juiz de Fora.
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