Investimento acima do exigido por lei não supre demandas da saúde pública de Juiz de Fora

Última reportagem da série sobre saúde pública do município ouviu vereadores das comissões de Finanças e Saúde para entender gargalos e possíveis caminhos 


Por Nayara Zanetti

24/08/2025 às 06h00

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(Foto: Leonardo Costa)

Ao longo do mês de agosto, a Tribuna publicou uma série de reportagens sobre a Saúde Pública de Juiz de Fora. Após receber inúmeras reclamações de usuários que apontam sobrecarga do sistema, a equipe foi até as ruas para entender o cenário. Dividida em três matérias, a produção investigou os desafios enfrentados em todas as pontas do equipamento: da atenção primária, nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs), passando pela secundária, com a dificuldade de agendamentos no Pam-Marechal, até a rede de urgência e emergência, com as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e o Hospital de Pronto Socorro Dr. Mozart Teixeira (HPS). Com isso, a última reportagem da série se volta para o orçamento municipal, buscando entender se o investimento destinado à área é compatível com as necessidades da população. 

Em maio deste ano, a Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) apresentou as metas fiscais do 1º quadrimestre/2025 em audiência na Câmara Municipal de Juiz de Fora (CMJF). O Executivo gastou R$ 2,8 bilhões ou 90,58% da receita de R$ 3,1 bilhões, entre maio do ano passado e abril deste ano. Na área da saúde, o Município investiu 18,23% do total arrecadado. Apesar do percentual estar acima do exigido por lei, que corresponde a 15%, este foi o principal ponto criticado por alguns vereadores de oposição ao Governo durante a audiência, que apontaram declínio na área e até um suposto “colapso”. 

Em balanço do primeiro quadrimestre, a Prefeitura informou que os investimentos foram destinados a realização de 24.839 cirurgias, 1,1 milhão de exames, 1,3 milhões de atendimentos ambulatoriais e hospitalares, 17.992 internações, 23,1 milhões de medicamentos e 49.800 doses de vacinas aplicadas. O Executivo também ressaltou projetos específicos, como o mutirão oftalmológico “Fila Zero”, a implementação do prontuário eletrônico e a reforma de UBSs, como a do Bairro Linhares. 

No entanto, as reclamações ouvidas pela Tribuna, como longas filas formadas horas antes da abertura dos portões das UBSs e do Pam-Marechal, espera por vagas que duram meses e falta de profissionais e leitos, evidenciam que o investimento na área ainda é insuficiente para cobrir as demandas da população. Juiz de Fora é um polo de média e alta complexidade para mais de 200 municípios da macrorregião Sudeste de Minas Gerais. Apesar de a cidade ter 540.756 de habitantes, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população atendida ultrapassa 1 milhão de pessoas, o que pressiona principalmente os serviços 24 horas, segundo informações repassadas pela PJF à Tribuna. 

Como funciona o investimento público em saúde? 

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(Foto: Leonardo Costa)

Entender como esse dinheiro chega até a ponta, onde o atendimento acontece, é fundamental para compreender os desafios e as potencialidades da saúde pública. Ao ser atendido em uma UBS, receber uma vacina ou ser socorrido por uma ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), por exemplo, o cidadão está utilizando um serviço que é resultado de uma complexa engrenagem de financiamento. O Sistema Único de Saúde (SUS) se sustenta sobre um modelo tripartite, onde a responsabilidade financeira é dividida entre o Governo Federal, os Estados e os próprios municípios, de acordo com o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). 

Conforme previsto na Constituição, os Municípios são obrigados a investir no mínimo 15% de toda a sua arrecadação em saúde. São eles que gerenciam diretamente os postos de saúde, as UPAs e a maior parte dos serviços básicos oferecidos à população. Já os Estados devem aplicar, no mínimo, 12% de sua arrecadação. Eles atuam de forma complementar, apoiando os municípios e gerenciando serviços de maior complexidade, como hospitais regionais e laboratórios de referência. A União é o principal financiador do sistema. Seus repasses são essenciais para custear programas nacionais, como o Saúde da Família e a Farmácia Popular, além de procedimentos de alto custo, como transplantes e tratamentos oncológicos. 

A maior parte dos recursos federais é transferida pelo Fundo Nacional de Saúde (FNS). O modelo mais comum é o “fundo a fundo”, no qual o dinheiro sai diretamente do cofre nacional para o Fundo Municipal de Saúde. Esse mecanismo dá mais autonomia ao gestor local, que conhece a realidade da sua cidade e pode direcionar a verba para as necessidades mais urgentes, seja contratar mais médicos, comprar medicamentos ou reformar um posto de saúde. Para organizar essa transferência, os recursos são divididos em despesas de manutenção do dia a dia, como pagamento de salários, compra de insumos e pagamento de água e luz das unidades, e os gastos relacionados à estruturação, destinados a reformas, construção ou aquisição de equipamentos.  

Fiscalização e transparência 

Após a transferência e o início da execução das políticas públicas, o FNS monitora o valor repassado por meio do relatório quadrimestral de prestação de contas ou pelo Relatório Anual de Gestão (RAG). Dessa maneira, o Município é obrigado a elaborar um Plano de Saúde e prestar contas periodicamente ao Conselho Municipal de Saúde — órgão com participação da sociedade civil — e à Câmara de Vereadores. É através desses mecanismos que a população pode fiscalizar se o investimento está, de fato, se transformando em atendimento de mais qualidade para todos. 

Em resumo, o financiamento federal da saúde pública é um processo que consiste nas etapas de planejamento dos investimentos, execução dos recursos federais e monitoramento da aplicação dos recursos públicos. “O FNS busca orientar os estados e municípios a fazerem novos projetos, garantir a aplicação eficiente dos recursos da União e monitorar o uso dos recursos e a comprovação dos gastos”, diz Dárcio Guedes Júnior, diretor-executivo do FNS, ao site do Ministério da Saúde. 

Vereadores reconhecem problemas e sugerem propostas 

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(Foto: Leonardo Costa)

A Tribuna ouviu vereadores integrantes das comissões de Finanças e Saúde da Câmara Municipal de Juiz de Fora, que apresentaram suas análises sobre o cenário, revelando um diagnóstico complexo, com críticas, reconhecimento de avanços e constatação de que a solução para os problemas da saúde local depende de um esforço conjunto entre as esferas de governo. A Comissão de Finanças, Orçamento e Fiscalização Financeira é composta pelos parlamentares Juraci Scheffer (PT), Marlon Siqueira (MDB) e Tiago Bonecão (PSD), enquanto a Comissão de Saúde Pública e Bem-Estar Social conta com os seguintes integrantes: Dr. Antônio Aguiar (União), Dr. Marcelo Condé (Avante) e Laiz Perrut (PT). Ambas foram escutadas pela reportagem.  

Os parlamentares da Comissão de Finanças concordam que o Município tem cumprido e até superado a obrigação legal de investir 15% de seu orçamento em saúde. O vereador Tiago Bonecão afirmou que o grupo tem acompanhado de forma permanente os investimentos na área em Juiz de Fora. “Seguimos trabalhando para que o orçamento da saúde seja continuamente ampliado, com atenção às demandas da população e buscando garantir recursos que fortaleçam o atendimento em toda a rede pública do município”, declarou Bonecão. 

O presidente da comissão, Juraci Scheffer (PT), corrobora a informação, destacando que, apesar de uma redução percentual em relação a períodos anteriores, o valor nominal investido aumentou. “Isso mostra que a saúde continua sendo prioridade da gestão municipal”, avalia. Scheffer aguarda o envio da proposta da Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2026 para aprofundar a análise dos recursos previstos para o próximo ano. 

No entanto, para o vereador Dr. Marcelo Condé, membro da Comissão de Saúde, o investimento, por si só, não é suficiente. “Sabemos que investir é importante, mas não é suficiente se os resultados não chegarem na ponta. É preciso avaliar onde e como esses recursos estão sendo aplicados”, pondera. Como médico, ele afirma acompanhar de perto os relatos da população e a sobrecarga dos profissionais, defendendo a fiscalização e a cobrança por melhorias. “Isso não pode ser ignorado. É preciso avaliar onde e como esses recursos estão sendo aplicados, se estão chegando com eficiência às unidades básicas, às UPAs e hospitais, e se estão refletindo em estrutura, insumos e pessoal adequados.”

Subfinanciamento do SUS e peso da macrorregião 

Os vereadores destacam que o papel de Juiz de Fora para as outras cidades da Zona da Mata contribui para uma pressão sobre o sistema de saúde do município. Essa realidade, apontada por Juraci Scheffer e Dr. Antônio Aguiar, presidente da Comissão de Saúde, sobrecarrega a rede local. “A saúde é tripartite, mas Juiz de Fora atende pacientes de 94 cidades. Sem um hospital regional,  UPAs e UBSs acabam sobrecarregadas”, afirma Scheffer, que cobra a conclusão da obra do Hospital Regional ou o avanço com o novo HPS pelo Governo estadual. 

Dr. Antônio Aguiar aprofunda a questão, explicando que o problema é histórico e estrutural, ligado ao subfinanciamento do SUS em nível nacional. “O financiamento do SUS não acompanha as reais demandas da população, como o próprio crescimento populacional e o aumento das demandas de consultas especializadas”, explica. Ele ressalta que levantamento de anos atrás mostrou a existência de mais de 1 milhão de cartões do SUS emitidos em Juiz de Fora, para uma população de cerca de 600 mil habitantes, evidenciando o uso do sistema por pacientes de outras regiões sem a devida compensação financeira. 

Para Aguiar, a situação atual, com filas e superlotação, é reflexo direto desse sistema subfinanciado, que leva à má remuneração de profissionais e serviços, desestimulando a atuação no SUS. Já a vereadora Laiz Perrut, integrante da Comissão de Saúde, aponta que entre as principais demandas está a necessidade de contratação de mais profissionais de saúde, como farmacêuticos, para mitigar os danos relacionados ao acesso a medicamentos e reduzir a sobrecarga de trabalho. A parlamentar relata que realiza levantamento sobre as denúncias que recebe da população nas visitas às unidades de saúde e encaminha à Prefeitura para buscar soluções que diminuam as filas para exames, consultas e cirurgias. 

O vereador Marlon Siqueira, membro da Comissão de Finanças, foi procurado pela reportagem para se manifestar no início de julho, quando as apurações da série tiveram início, mas não retornou até o fechamento desta matéria. 

Apesar das críticas gerais ao sistema, vereadores reconhecem avanços na atenção básica do município. Os vereadores Laiz Perrut e Juraci Scheffer destacam como pontos positivos a reforma e a ampliação de UBSs, a expansão do horário de funcionamento e o aumento das equipes de Saúde da Família. Na mesma linha, o presidente da Comissão de Saúde, Dr. Antônio Aguiar, avalia que a estratégia da Saúde da Família trouxe uma “melhora substancial no atendimento de primeira linha”, ajudando a diminuir a procura pelas unidades de emergência. Entretanto, entre as principais críticas dos usuários ouvidos pela Tribuna ainda estão os transtornos causados pelas mudanças no horário de atendimento por área geográfica, a falta de profissionais em razão da alta rotatividade provocada por contratos temporários, e a sobrecarga das UPAs e do HPS por dificuldade de atendimento na atenção primária.

O que diz a Prefeitura? 

Em nota, a Prefeitura informou que, em consonância com a Lei Complementar 141/2012, que determina a aplicação mínima de 15% da receita própria em ações de saúde, Juiz de Fora tem mantido patamar superior a esse percentual. Em 2024, foram destinados 18,47% da receita municipal ao setor. Já até o terceiro bimestre de 2025, esse índice chegou a 22,03%, considerando as despesas liquidadas.

Segundo o Executivo, a maior parte dos recursos da saúde tem sido destinada à assistência hospitalar e ambulatorial, que responde pela maior complexidade e volume de atendimentos. Em 2024, esse segmento recebeu 69,44% da aplicação dos recursos, enquanto a Atenção Básica, 14,78%.

A PJF também informou que, para 2026, já estão sendo projetados investimentos importantes na infraestrutura da rede municipal de saúde, que incluem aquisição de equipamentos, modernização tecnológica com kits de telessaúde viabilizados pelo PAC, além de obras de construção, reforma e ampliação de unidades de atendimento. Dentre elas:

  • Construção do CAPS Leste (PAC);
  • Construção da UBS Leste (PAC);
  • Construção da UBS Parque Independência;
  • Construção do CAPS AD III;
  • Reforma e ampliação da UBS de Valadares;
  • Reforma da UBS Nova Era;
  • Reforma do CAPS Infância e Juventude (CAPS-IJ);
  • Reforma da UBS Marumbi.

Segundo o Executivo municipal, conforme previsto na legislação federal, o orçamento destinado à saúde pública é definido anualmente e, na composição do documento, são considerados contratos, convênios, aquisição de materiais, medicamentos, investimentos em infraestrutura e remuneração de pessoal, além dos repasses dos Governos estadual e federal e da arrecadação própria do município.

A PJF finaliza a nota dizendo que “segue trabalhando para garantir um sistema público de saúde mais estruturado, eficiente e acessível para toda a população de Juiz de Fora e para os mais de 200 municípios para o qual sua rede de saúde é referência”.

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