Usuários reclamam de longas filas e falta de funcionários em UBSs de Juiz de Fora
Ausência de médicos e enfermeiros após fim de contrato têm sido um dos problemas recorrentes na saúde pública da cidade, conforme a população

Longas filas formadas horas antes da abertura dos portões, frustração de não conseguir uma consulta e a falta de profissionais para realizar atendimentos básicos têm sido situações frequentes no dia a dia de usuários de Unidades Básicas de Saúde (UBSs) em Juiz de Fora. A Tribuna visitou diferentes regiões da cidade para entender as principais queixas da população. A matéria é a primeira de uma série de reportagens sobre a Saúde Pública do município, atendendo a reclamações recorrentes recebidas de leitores que apontam uma sobrecarga no sistema.
A equipe de reportagem do jornal percorreu unidades em diferentes pontos da cidade, como nos bairros São Pedro (Cidade Alta), Benfica (Zona Norte), Dom Bosco e Santa Luzia (região Sul), e a apuração revela que a situação não é um problema pontual, mas uma falha sistêmica. As queixas sobre a gestão de contratos e o planejamento da rede se repetem em mais de uma região. Para preservar a identidade das fontes, os nomes citados nesta reportagem são fictícios.

‘Tem gente que madruga aqui’
Ao tentar agendar um exame preventivo na última semana na UBS da Zona Norte, o casal Lúcia e Marco foi surpreendido pela ausência de profissional disponível. “Venceu o contrato do enfermeiro e não tem outro no lugar. Deve voltar só a partir do dia 10 de agosto, talvez”, relatam. Para eles, a espera e a incerteza não são uma opção. “Eu não posso esperar, vou ter que pagar no particular”, comenta Lúcia. Pouco depois, Lara chega até a mesma unidade com seu filho de 7 meses em busca da vacina contra a Covid-19, mas foi informada que o imunizante estava em falta. “Estou vindo toda semana para ver se tem a vacina. Já era para ele ter tomado há duas semanas”, comenta. Além disso, ela acrescenta que para consultar é preciso chegar bem cedo. “Se você chegar 10h, não vai ter mais ficha, mesmo ele sendo criança.”
Do outro lado da cidade, Joana e seu filho Lucas, de 11 anos, chegaram à unidade do São Pedro às 6h50 para que o menino pudesse consultar e realizar um exame de sangue. Às 8h, Lucas foi chamado para fazer o exame, mas mesmo assim a espera continuou. “São 10h30 e ainda não entramos para consultar. Nem sei a hora que vou sair daqui hoje”, desabafou Joana, enquanto aguardava do lado de fora do local, pois não havia mais espaço na sala de espera. Ela explica que a rotina é sempre de incerteza: “A gente tem que chegar aqui de madrugada, 5h da manhã, para tentar uma vaga, porque já aconteceu muitas vezes de eu vir e o médico simplesmente não aparecer”.
Também na Cidade Alta, Alice e sua avó Marta saiam da UBS às 10h30 quando foram abordadas pela nossa equipe. “Cheguei aqui às 6h30 com minha avó, de 76 anos, e quase que ela não foi atendida, pegamos a última ficha.” Agora, após esse atendimento, sua avó terá que aguardar na fila de espera para realizar uma consulta com o oftalmologista e realizar um exame. De acordo com a neta, atualmente a unidade conta com três médicos e os atendimentos são divididos em cinco pacientes para cada médico. “As consultas são separadas por endereço, o que acabou reduzindo o número de atendimentos.”
“Tem gente que madruga aqui, chega 3:30 da manhã”, relata Henrique, porteiro de uma das unidades – que não será identificada para preservar a identidade da fonte, descrevendo o esforço da população para garantir uma das poucas vagas disponíveis. “De manhã volta direto gente sem atendimento”, completa. Henrique diz que nos últimos dias os pacientes que foram consultar no período da tarde também tiveram que voltar para casa, pois não havia médico para atender. “O mês de julho todo faltou médico em algum momento. Aqui são cinco médicos de manhã e dois à tarde. Mas a tarde não está tendo. Às vezes, uma fica afastada de atestado e a outra está com licença-maternidade.”
Além da falta de médicos e enfermeiros, a instabilidade atinge também a segurança das unidades. Conforme Henrique, os contratos dos porteiros e vigias se encerraram no dia 25 e não foram renovados. A informação é que, no lugar deles, a segurança ficará a cargo da Guarda Municipal. A mudança gera apreensão, pois os atuais porteiros são vistos como essenciais não apenas para a vigilância, mas também para a mediação de conflitos diários e para o acolhimento de pacientes frustrados com a falta de atendimento.

Lacunas nas UBSs geram sobrecarga nas UPAs
A queixa de Henrique – de que os médicos em licença não são substituídos e o quadro de funcionários ser insuficiente para a demanda – foi confirmada por um ex-integrante do Conselho Regional de Saúde, que esteve à frente das discussões sobre os serviços de atendimento primário em esfera local e regional por anos, mas prefere não ser identificado. Ele será chamado de César. “Falta de vacina, falta de funcionários. A população está revoltada com isso.” Segundo ele, a situação se repete em outros setores. “A sala de vacina está fechada na parte da tarde porque não tem funcionário. Isso já tem mais de um mês”, denúncia.
César afirma que um dos pilares da situação é a alta rotatividade de profissionais, agravada por um modelo de contratação que privilegia vínculos temporários em detrimento de cargos efetivos. “O médico passa em um concurso, por exemplo, abandona o cargo e aí a unidade fica sem [médico], simples assim”, resume. Esse ciclo impede a criação de um vínculo de longo prazo entre o profissional e a comunidade, um dos fundamentos da Estratégia de Saúde da Família. “O certo seria colocar os médicos efetivos em horário integral e os temporários para dar suporte no período da noite.”
Outro ponto crítico, segundo César, é a divisão do atendimento por área geográfica em horários específicos, mudança implementada no ano passado quando as UBSs passaram a funcionar em horário estendido, com atendimento até às 19h em algumas unidades. Ele diz que a proposta inicial era colocar uma equipe de reforço à noite, no entanto, o que aconteceu foi a divisão das equipes em dois turnos, com um número de funcionários atuando das 7h às 13h e outro das 13h às 19h. Aliado a isso, também tem a questão da restrição por localidade. Na prática, um médico que atende no período da tarde, por exemplo, só pode consultar pacientes de uma determinada rua ou avenida, mesmo que a sala de espera esteja cheia de moradores de outras áreas. Essa foi a principal reclamação feita pelos pacientes entrevistados.
“No formato antigo, um médico conseguia atender uma média de 25 pacientes, agora despencou para sete em alguns casos. Não é que os médicos não querem fazer o trabalho deles. Eles não têm condições de fazer o que é necessário. Um médico não tem condição de atender 20 pacientes de 7h às 13h”, reflete César.
O ex-conselheiro explica que se um morador chega para uma consulta e o profissional daquele turno não cobre sua área, ele é obrigado a voltar para casa sem atendimento ou, como ocorre na maioria dos casos, procurar uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), sobrecarregando o serviço de emergência com demandas que deveriam ser resolvidas na atenção básica. “80% da demanda da UPA poderia ser atendida dentro da unidade básica. São problemas menores que poderiam ser resolvidos aqui.”
A crítica à fragmentação do atendimento também é colocada pelo atual presidente do Conselho de Saúde de Juiz de Fora, Jorge Ramos, que acredita que a divisão dos horários foi um erro para o cuidado contínuo. “Dividiram o horário, o médico perdeu o vínculo com a comunidade. Ele não acompanha mais a família.” Ele também reforça o argumento de César de que as UBS, que deveriam ser a porta de entrada ao Sistema Único de Saúde (SUS), estão, na verdade, sobrecarregando os serviços de emergência da cidade. “É um descaso com a população”, afirma o presidente.
A dificuldade se estende às visitas domiciliares. Sem carro oficial disponibilizado pela prefeitura, os médicos dependem de seus próprios veículos e de um tempo limitado para realizar as visitas, o que, na prática, inviabiliza o atendimento para muitos pacientes acamados. Essa foi uma das reclamações escutadas no Bairro São Pedro.

‘Foram cinco secretários de saúde em quatro anos’
O atual presidente do Conselho de Saúde diz que a raiz do problema está na baixa remuneração e na lentidão da gestão pública. “O município abre um processo seletivo com um salário que não é atrativo. Quando um profissional se aposenta ou vence um contrato, a prefeitura é muito lenta nesse processo de reposição”, afirma Jorge, acrescentando que essa combinação de fatores faz com que os médicos procurem oportunidades em outras cidades ou na rede estadual, deixando as unidades de Juiz de Fora sem equipes.
O presidente também manifesta insatisfação com a falta de comunicação com o Executivo. Segundo ele, a avaliação de quem fiscaliza o sistema de perto não tem sido ouvida. “Nós não somos chamados para participar das discussões.”
A respeito do fim das mudanças relacionadas à segurança das unidades, Jorge considera a medida inviável e inadequada. “A Guarda Municipal não tem um efetivo para cobrir as todas as UBS”, afirma. Além da impossibilidade logística, o presidente critica a incompatibilidade da função: “O porteiro contornava a situação, apaziguava, conversava. É diferente”, pontua, citando a recente agressão a uma enfermeira em uma UBS para exemplificar a vulnerabilidade do sistema.
Por fim, César, o ex-conselheiro, também acrescenta a alta rotatividade na Secretaria de Saúde como um fator que contribui para esse cenário. “Foram cinco secretários de saúde em quatro anos. A saúde não tem como se desenvolver. Essa troca frequente na administração e a divisão de horário prejudicaram imensamente”, finaliza.
Prefeitura esclarece questionamentos de usuários
Em meio às críticas, durante a apuração, a reportagem também ouviu relatos de usuários que conseguiram agendar consultas e realizar procedimentos necessários, apesar dos desafios conhecidos. Para eles, a UBS cumpre seu papel de porta de entrada do sistema de saúde, oferecendo o suporte necessário para suas demandas.
“A de Benfica melhorou depois da reforma, antes era mais difícil conseguir atendimento”, “Fiz todo meu acompanhamento do pré-natal e agora meu filho está conseguindo consultar aqui também” e “Apesar de demorar um pouco, principalmente os exames, o atendimento é bom” foram relatos escutados pelo jornal.
Em nota enviada à Tribuna, a Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) esclareceu questões levantadas sobre o funcionamento das Unidades Básicas de Saúde do município. Entre os pontos abordados estão o abastecimento de vacinas contra a Covid-19, a presença de vigias e porteiros, filas nos atendimentos e contratação de profissionais.
Vacinação contra a Covid-19
A PJF informou que não há desabastecimento de vacinas contra a Covid-19 para crianças menores de 5 anos e público maior de 12 anos. No entanto, alerta para a baixa quantidade recebida para a faixa etária de 5 a 11 anos. Em 17 de julho, foram entregues apenas 216 doses, número considerado significativamente inferior ao solicitado ao Governo do Estado, segundo a Administração municipal.
Presença de vigias e porteiros
Sobre a informação do fim do contrato dos vigias e porteiros nas UBSs, a Prefeitura informou que a Sllicon, empresa responsável pelo serviço, negou que o contrato tenha sido encerrado no dia 25 de julho sem renovação. A empresa Prestar foi substituída pela TR2, e a prestação dos serviços continua normalmente.
Filas nas UBSs
Sobre as filas nas UBSs, a Prefeitura afirmou que não é necessário que os usuários cheguem de madrugada para garantir atendimento. As fichas começam a ser distribuídas a partir das 7h, momento em que também é iniciado o agendamento das consultas eletivas para ambos os turnos e realizado o atendimento espontâneo. A PJF disse que nenhum paciente deixa a unidade sem acolhimento, destacando que todos são ouvidos em consultório e orientados conforme sua necessidade. A recomendação é que usuários com demandas espontâneas, relacionadas a situações agudas, procurem a UBS de referência territorial no turno em que sua equipe do Programa Saúde da Família (PSF) estiver disponível.
Atendimento odontológico
A nota esclarece ainda que o atendimento odontológico das UBSs dos bairros São Pedro e Santos Dumont está sendo realizado no Centro de Especialidades Odontológicas (CEO), localizado junto à UPA Oeste.
Territorialização e contratações
A Prefeitura também abordou as reclamações relativas à redução no número de atendimentos, associadas à configuração das consultas por áreas geográficas implantada no ano passado. Segundo a nota, a Portaria de Territorialização, vigente desde 2015, está em processo de revisão, com novos estudos para atualizar as distribuições geográficas. A nova portaria deve ser divulgada em breve.
Sobre a falta de médicos e enfermeiros, a Prefeitura esclarece que realiza processos seletivos periódicos para contratações temporárias. Essas substituições seguem uma lógica anual, conforme as vagas disponíveis e as equipes do PSF. Caso uma unidade fique temporariamente sem profissionais, isso não caracteriza desassistência, já que as equipes atuam de maneira complementar. A nota destaca ainda que dificuldades nas contratações também estão ligadas à baixa adesão dos profissionais aos editais disponibilizados.