Rede de urgência e emergência de Juiz de Fora enfrenta sobrecarga e demora por leitos

Samu, UPAs e HPS operam sob pressão regional; casos graves aguardam transferência e chegam à Justiça


Por Pedro Moysés

17/08/2025 às 06h00

Juiz de Fora tem proporção de leitos por habitante acima do parâmetro recomendado pela Organização Mundial da Saúde, mas enfrenta sobrecarga persistente na rede de urgência e emergência. Como polo de média e alta complexidade para mais de 200 municípios da macrorregião Sudeste de Minas, a cidade atende uma população que ultrapassa 1 milhão de pessoas, o que pressiona especialmente os serviços 24 horas, como as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e o Hospital de Pronto Socorro Dr. Mozart Teixeira (HPS).

Esta é a terceira reportagem da série sobre a Saúde Pública em Juiz de Fora. Após abordar a Atenção Secundária, nas Unidades Básicas de Saúde (UBSs), e a Atenção Secundária, a Tribuna analisa a situação da urgência e emergência, frequentemente percebida como porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS).

Rede de urgência e emergência de Juiz de Fora enfrenta sobrecarga e demora por leitos
HPS concentra atendimentos de alta complexidade em Juiz de Fora (Foto: Leonardo Costa)

Segundo a Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), há, formalmente, 1.854 leitos conveniados ao SUS, o equivalente a um para cada 108 habitantes. Ainda assim, quem busca atendimento de urgência e emergência nem sempre encontra vaga. Em um dia típico, cerca de 150 pessoas aguardam transferência hospitalar; parte delas permanece nas UPAs, que deveriam estabilizar casos e manter pacientes em observação por até 24 horas, mas acabam retendo internações por mais tempo, a depender da disponibilidade de leitos.

Nos atendimentos classificados como menos urgentes, o tempo de espera pode chegar a três horas nas UPAs (média de 2h59) e a duas horas no HPS. A priorização segue o risco clínico, mas, diante da sobrecarga, atrasos podem ocorrer mesmo em quadros graves.

O quadro se agrava porque uma parcela da demanda não precisaria estar na urgência. Como mostrado na reportagem sobre a Atenção Básica, pacientes com febre baixa, dores crônicas ou busca por renovação de receitas ocupam cadeiras e salas de espera, após relatar negativa de atendimento nas UBSs, desviando recursos de casos que exigem intervenção imediata.

Rede de urgência e emergência de Juiz de Fora enfrenta sobrecarga e demora por leitos
UPA Benfica registra alta demanda e longas esperas (Foto: Leonardo Costa)

Déficit no Samu pode ampliar pressão sobre pronto-atendimentos

Essa pressão começa antes mesmo de o paciente chegar a uma unidade. O primeiro atendimento, muitas vezes decisivo para a sobrevivência, é prestado pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), que também enfrenta dificuldades para manter o serviço.

Em Minas Gerais, os consórcios que operam o Samu alertam para um desequilíbrio no financiamento, considerado insustentável, conforme mostrou matéria publicada no fim de julho. No Cisdeste, que atende Juiz de Fora e municípios da Zona da Mata e Vertentes, o déficit anual pode ultrapassar R$ 5,3 milhões. Gestores cobram recomposição imediata do custeio federal, que, segundo eles, não vem cumprindo o percentual mínimo de 50% previsto em lei, além da criação de uma 13ª parcela para cobrir encargos trabalhistas.

Rede de urgência e emergência de Juiz de Fora enfrenta sobrecarga e demora por leitos
Samu é a porta inicial para muitos atendimentos emergenciais (Foto: Felipe Couri)

O tema foi discutido na última quinta-feira (14) em audiência da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Entre os principais desafios, especialistas e representantes dos consórcios apontaram a ausência de regulamentação da profissão de condutor socorrista e a redução do financiamento federal – fatores que aumentam a pressão sobre os orçamentos estadual e municipais e ameaçam a continuidade do serviço.

O Governo de Minas afirmou ampliar investimentos para equipar unidades e financiar programas de capacitação, mas cobrou da União a recomposição dos repasses e maior reconhecimento dos consórcios intermunicipais como gestores estratégicos do Samu. Representantes da Secretaria de Estado de Saúde citaram iniciativas como a inclusão de eletrocardiograma nos veículos e o financiamento do Núcleo de Educação Permanente, único do país com aporte estadual específico, mas alertaram que, sem reforço federal, o equilíbrio do serviço e a meta de cobertura integral seguem em risco.

Falta de leitos leva famílias à Justiça

Na prática, o impacto da sobrecarga e das limitações da rede aparece em histórias como as de famílias que precisaram recorrer à Justiça para garantir transferência e tratamento. Em julho, Márcio Heleno Oliveira, 63 anos, cego, amputado e com diversas comorbidades, chegou à UPA Santa Luzia com um abscesso na região perianal. A dor o impedia de permanecer sentado. A sobrinha, que o acompanhava, solicitou a um funcionário da recepção que providenciasse uma maca para que ele aguardasse a triagem de forma mais confortável.

O pedido foi negado. Conforme relato da família, a enfermeira informou que o procedimento da unidade exigia que todos os pacientes passassem pela triagem sentados em cadeira de rodas. Nem mesmo a intermediação da assistente social resultou em exceção. “No fim, chamaram um técnico de enfermagem e colocaram ele à força na cadeira, apesar de não ter condições físicas para isso”, disse a sobrinha. Após a triagem, o idoso foi encaminhado a uma sala que dispunha de maca disponível.

A familiar ingressou com ação judicial e obteve liminar determinando que a Prefeitura e o Estado de Minas Gerais realizassem a transferência para hospital público ou privado com capacidade de CTI no prazo de 24 horas, sob pena de multa diária de R$ 2 mil, limitada a R$ 50 mil. Márcio morreu no dia 15 de julho, à espera de um leito, sem conseguir a transferência. A sobrinha ainda aguarda resposta de pedido formal feito à Ouvidoria para fundamentar nova ação.

Cenário de espera se repete

Situações semelhantes são relatadas por uma advogada que atua na área da saúde e que, a pedido, não será identificada. Segundo ela, pacientes em estado grave que necessitam de UTI, cirurgia ou tratamento especializado podem esperar dias por vaga, liberada muitas vezes apenas após decisão judicial. “Tentamos pela via natural, não conseguimos. A resposta da Ouvidoria é sempre padronizada: não há vaga, o paciente segue monitorado pela regulação. Sem judicializar, a vaga não surge”, afirmou.

A Tribuna ouviu também uma moradora que passou por duas judicializações para garantir a transferência do pai, de 72 anos. Em junho, ele sofreu infarto e foi levado à UPA Regional Leste. No local, aguardou mais de meia hora com dor no peito e precisou ser conduzido em pé para o consultório por falta de cadeira de rodas. Encaminhado ao CTI, a filha relatou que a unidade era aberta e sem controle de acesso. Como a Ouvidoria só emitiu negativa de vaga após o feriado, a liminar foi concedida cinco dias depois. Transferido para a Santa Casa, ele realizou exames e cateterismo já no dia seguinte à chegada.

Rede de urgência e emergência de Juiz de Fora enfrenta sobrecarga e demora por leitos
Estrutura hospitalar atende casos de urgência e internação, mas enfrenta limitações de leitos (Foto: Felipe Couri)

Em resposta, a Secretaria de Saúde informou que a Regional Leste possui cadeiras de rodas disponíveis para o atendimento dos usuários. Sobre a realização de exames, afirmou que a unidade oferece testes laboratoriais, de imagem e outros procedimentos, mas que a solicitação depende da avaliação clínica do médico responsável, com base nos sintomas, no histórico e na condição de cada paciente, não cabendo à gestão da unidade determinar a necessidade ou disponibilidade de sua realização.

No último domingo, o paciente voltou a ser internado, desta vez por suspeita de hemorragia digestiva. Com pressão arterial de 7 por 4, foi encaminhado a outro CTI da Regional Leste, com apenas dois leitos, onde permaneceu dois dias. Em seguida, foi transferido para a enfermaria, sem realização de exames para identificar a causa do sangramento. Após seis dias, nova negativa da Ouvidoria permitiu a obtenção de liminar, e, por volta das 18h, ele foi levado para a Maternidade Therezinha de Jesus. A filha relatou diferenças no atendimento: “Cheguei ao HMTJ às 20h, meu pai ainda não tinha sido alocado, mas já havia feito exame de sangue. Na Regional, não realizaram nenhum exame, apenas medicaram.”

Procurada pela Tribuna, a Ouvidoria informou que não possui balanço de reclamações específicas sobre transferência, pois esses casos são registrados como “pedido de ajuda”.

Conselho afirma cobrar medidas

As situações relatadas chegam ao conhecimento do Conselho Municipal de Saúde (CMS), que afirma acompanhar as falhas no atendimento de urgência e emergência em Juiz de Fora e alerta que a situação exige medidas imediatas da Prefeitura.

“Recebemos relatos constantes de pacientes aguardando horas ou até dias por transferência e atendimento adequado. Não é algo pontual, mas um quadro crônico que vem se agravando”, afirmou o presidente do órgão, Jorge Ramos, à Tribuna.

Com a atribuição de fiscalizar as políticas públicas de saúde, o CMS afirmou que cobra medidas concretas, como reestruturação física das unidades, reforço das equipes e garantia de insumos básicos. Para o presidente, as soluções precisam ir além de ações paliativas. “Não adianta trocar um telhado ou reformar uma sala se a escala médica continua incompleta e o paciente segue sem atendimento. É preciso planejamento e execução para resolver o problema na ponta”, disse.

O conselho intensifica visitas às unidades e reúne dados para elaborar um relatório detalhado à Secretaria de Saúde. “O objetivo é assegurar atendimento digno, rápido e resolutivo. Saúde é direito, não favor”, concluiu.

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