Procura por comida aumenta em Juiz de Fora, e instituições pedem ajuda
Com agravamento do quadro da fome na cidade, ações solidárias apontam necessidade de reforço das políticas públicas
Há cerca de um ano, a supervisora de administração Lilian Augusto da Silva e a motorista Suymara Brück aceitaram o convite dos amigos David Gonçalves e Letícia Ferreira e deram continuidade ao trabalho voluntário de entrega de marmitas a pessoas em situação de rua. Elas levantam doações entre familiares e amigos e preparam as refeições que, a princípio, eram entregues todas as quartas-feiras. Com o passar dos meses, as duas começaram a perceber que a situação econômica das pessoas que faziam as doações também ficou apertada.
Com isso, a frequência das doações precisou ser modificada de semanal para quinzenal. “A coisa começou a complicar até para os nossos amigos. Aumentou o número de pessoas dormindo nas ruas e diminuiu a quantidade de gente que ajuda” destaca Lílian.
Além dos alimentos para compor as refeições, o grupo também recebe doações em dinheiro, para a compra de garrafas d’água e de materiais usados para montar as marmitas. As duas contam que a carência que testemunham nas ruas têm se ampliado, especialmente após o início das medidas mais restritivas.
“Não tem mais lanchonetes e lojas abertas, e as pessoas ficam sem ter onde pedir o alimento.” A preocupação delas e dos amigos agora, além de conseguir alimentos, é com a aproximação do período mais frio do ano, quando as condições de vulnerabilidade se tornam ainda mais difíceis. Nesse contexto, todas as doações, mínimas que sejam, importam.
Imprevisível
Nas instituições que trabalham com pessoas em situação de vulnerabilidade, esse aumento na demanda por alimentos também é percebida com clareza. A Sociedade Beneficente Sopa dos Pobres, em função da pandemia, precisou parar de receber a população em situação de rua em seu salão e passou a distribuir as marmitas com as refeições diariamente.
“Muitas das instituições fecharam as portas. Muitas pessoas que ajudavam acabam não podendo continuar. Aumentou muito a procura pela sopa, especificamente no último mês, ainda não sabemos o porquê. Tínhamos uma média de 180 pessoas por dia, passou para 230. Chegamos a ter quase 300 pessoas em um dia. Bateu o recorde. Nos últimos 20 anos, não tivemos nada parecido,” conta o presidente da instituição, Daniel Salomão.
Ele ressalta que, apesar de ser um momento com alta demanda, as doações da comunidade têm contribuído para a continuidade do trabalho. Embora a entidade não trabalhe em nível crítico, como pontua Daniel, como a situação nos próximos meses é imprevisível, é preciso continuar os esforços de captação para seguir com o atendimento.
“Ao mesmo tempo que as pessoas que doavam estão doando menos, mais pessoas têm se sensibilizado. É inegável que o cara que doava dez pacotes de arroz passou a doar seis. Mas ao mesmo tempo, com a comunicação que temos feito, mais pessoas têm doado. Mais pessoas doam um, menos pessoas doam dez. Sensibilização não pode esmorecer, senão ficamos enrolados”, afirma.
Eles também trabalham com a doação de cestas básicas para famílias cadastradas. Qualquer alimento que possa ser incluído num almoço, ou em uma cesta, é bem-vindo. A instituição também recebe doações em dinheiro para as despesas com funcionários.
‘Muitas famílias não tinham nada. Algumas só fubá’
Os pedidos de ajuda têm se multiplicado para os Anjos da Rua, que é outra iniciativa que promove doações de refeições e de cestas básicas. O grupo também tem sentido dificuldade de arrecadar donativos que ajudam a manter o trabalho, como itens de higiene, máscaras e roupas.
“Nós tínhamos doadores fixos, que também relatam que a situação financeira está instável. Alguns continuam doando, outros não têm conseguido e dizem que no ‘mês que vem’ devem voltar a ajudar”, conta Maria Lúcia Moreira, que é a coordenadora da ação.
A face mais difícil da fome tem se apresentado de maneira cada vez mais intensa para os voluntários.
“Fomos recentemente ao Bairro Novo Triunfo II e nos deparamos com muitas famílias que não tinham nada. Algumas só tinham fubá. É muita gente nessa situação. Temos dado preferência às mães que estão passando por esse momento sozinhas com os filhos. E são muitas.”
Maria Lúcia destaca que, quando o grupo chega a esses locais, as pessoas já estão aguardando e recebem as doações com muita alegria. Os Anjos de Rua também recebem itens de cesta básica, como arroz, feijão, fubá, entre outros.
No limite
A Fundação Maria Mãe, mantenedora da Obra dos Pequeninos de Jesus, também percebeu que mais pessoas têm buscado por acolhimento. Além do trabalho diário com alimentação, a instituição também tem dado suporte para a distribuição de alimentos em parceria com a Prefeitura, aos finais de semana. O atual presidente da instituição, Hélio Rodrigues de Oliveira, explica que também foi percebida uma mudança no perfil das pessoas que buscam pelo serviço.
“Éramos muito procurados por pessoas em situação de rua. Ultimamente, muita gente que tem uma residência fixa passou a não ter o que comer. Muitos desempregados, egressos do sistema prisional.” Com isso, as doações não foram tão alteradas, mas elas ficam no limite.
“Não conseguimos atender a toda a demanda que a gente tem, porque tentamos manter o orçamento. A procura é muito grande. Se tivéssemos mais recursos, conseguiríamos atingir a mais pessoas.”
No momento, além do leite de caixinha, a maior necessidade é com itens de higiene, como aparelhos de barbear e escovas de dente.
Necessidade de ir além da assistência imediata
“O crescimento da fome em Juiz de Fora é latente”, afirma o advogado Rafael Silva dos Santos, membro do Fórum de Segurança Alimentar de Juiz de Fora. Ele explica que, no momento em que há várias iniciativas trabalhando de maneira isolada, o Fórum tem se dedicado a trazê-las para o debate. Mas o que se percebe, nesse espaço, é a necessidade de ir além da assistência imediata.
“Ela é absolutamente necessária, mas as organizações também já estão movendo esforços para que se tenha um diagnóstico sobre a situação. Nessa luta, no ano passado, cobramos iniciativas imediatas, mas precisamos resolver de forma definitiva o problema da fome.” Pensando nessas pessoas, conforme Rafael, embora seja imprescindível aumentar o número de cestas doadas, outras frentes de trabalho também são necessárias.
“Precisamos de outras iniciativas, como fortalecer a agricultura familiar e torná-la acessível à população juiz-forana. De imediato, precisamos aumentar o acolhimento da população em situação de rua. Há muitas pessoas passando fome. Só 250 têm acesso a três refeições diárias nas instituições de acolhimento. Sendo que o último diagnóstico, feito em 2016, indicava que havia 879 pessoas nestas condições na cidade. Hoje o número é certamente maior.”
Ampliação do Restaurante Popular
Essa necessidade é corroborada pelo Centro de Referência em Direitos Humanos de Juiz de Fora (CRDH). A coordenadora Érica Herzog lembra que a fome e as dificuldades sempre existiram. No entanto, o perfil das pessoas que demandam o alimento mudou, segundo ela, pessoas que nunca tiveram cadastro no Centro de Referência em Assistência Social (Cras) estão precisando buscar as unidades mais próximas. “As ações voluntárias e de assistência colaboram, elas são muito bem-vindas, mas precisamos ampliar o programa de segurança alimentar, porque o atual tem se mostrado insuficiente frente à demanda.”
Ela reforça que não é só a necessidade de entregar as cestas básicas, mas também de oferecer alimentos que, de fato, vão garantir uma alimentação mais saudável, como frutas e legumes. “Nesse aspecto, temos uma defesa ampla de que a alimentação seja assegurada dessa forma. Há quem vá dizer que a nossa defesa é utópica, que a gente não tem nem o básico, mas não podemos perder isso de vista.”
Érica reitera que é preciso chegar nas pessoas em situação de rua que não estão nas instituições de acolhimento e estão com o direito à alimentação violado. Entre outras ações que, segundo ela, podem ser pensadas, é descentralizar o Restaurante Popular em pontos estratégicos , por exemplo, porque há muitas pessoas em situação de rua nos bairros. Nos restaurantes, segundo ela, já é possível receber a presença de outras pessoas em vulnerabilidade, inclusive, aquelas que trabalham no comércio informal.
PJF prepara programa para articular setores
O secretário Especial de Direitos Humanos da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), Biel Santos Rocha, explica que a nova administração estabeleceu três objetivos de ações imediatas. O primeiro é o choque de zeladoria, conhecido como ‘Operação Boniteza’; o segundo é a organização do plano municipal de imunização contra a Covid-19; o terceiro é o de combate à fome. Segundo Biel, 17 mil famílias estão em situação de extrema pobreza e, consequentemente, em situação de insegurança alimentar.
“Como vimos que o município, sozinho, não teria condições de resolver o problema, surgiu a proposta de criar uma articulação na cidade, unindo lideranças das comunidades, instituições e empresários para dar suporte a pessoas que estão buscando alimentos na porta dos supermercados, no lixo”, explica.
Ainda de acordo com ele, com isso, foi criado o projeto Mesa da Cidadania, que reúne organizações, movimentos e iniciativas que distribuem comida ou cestas básicas, já que a demanda aumentou e as ofertas diminuíram. A parceria com o Serviço Social do Comércio (Sesc) deve organizar o fluxo de distribuição das doações.
Na segunda-feira (5), a Prefeitura vai receber o coordenador Estadual do Programa Mesa Brasil, do Sesc, junto com alguns setores que vão contribuir no recebimento e direcionamento dos donativos. “O projeto vai articular com todas as instituições. Por meio delas, vamos conseguir perceber quais são as maiores demandas e como cobri-las”, afirma.
Com as informações cadastradas nos Cras, segundo ele, será mais fácil localizar e atender as famílias em vulnerabilidade. Por isso, o momento é de sensibilizar a população, o empresariado, todos que puderem contribuir. A previsão é que a campanha de sensibilização seja lançada para que as pessoas e as empresas saibam como colaborar.
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