Que o meu passado inspire um novo olhar no futuro
Enquanto corre em seu movimento incessante no presente, o rio Paraibuna revive memórias, para inspirar novos e desejáveis futuros, a partir das lembranças daqueles que escolhem não o esquecer.
Eu sou o Rio Paraibuna. Desde muito antes de Juiz de Fora se tornar cidade grande, eu já corria por aqui, acompanhando histórias de gente simples e de famílias que fizeram de mim parte da sua vida. Entre elas, a de Maurício Lima Correia, que se tornou, por escolha própria e forte apego às origens, um guardião das minhas memórias.
Quando criança, a família de Maurício foi a primeira a se instalar no bairro Nova Era, na zona norte da cidade, onde cresceu, em meio a um cenário ainda livre da interferência humana nas minhas margens. Naquele tempo, eu era espaço de lazer, brincadeira, aventuras e de abundância de vida. Ele lembra de pescar em mim com peneira, pegando traíra, bagre, cará e as “Marias Mole” que faziam a alegria da garotada. Era aqui, nas minhas águas, que sua infância, posso dizer assim, corria solta.
– Eu tive infância e o rio é meu lugar preferido de memórias – relata Maurício.
As minhas cheias também marcaram sua história. Ainda menino, Maurício viu a água subir a escada de casa e presenciou vizinhos acamados sendo retirados às pressas. Eu fazia parte de cada capítulo da vida no bairro – seja na alegria, seja na dificuldade, seja no sofrimento. Tal qual a vida é.
O trabalho de Maurício Lima Correia é silencioso, mas não passou despercebido. Seu esforço de resgatar memórias e dar créditos a quem colabora já lhe rendeu reconhecimento e homenagens.
Com o tempo, aquelas lembranças pessoais se transformaram em um projeto coletivo e colaborativo, como as brincadeiras entre os meninos da rua. Em 1998, já adulto, quando comprou seu primeiro computador, Maurício começou a reunir e divulgar fotos antigas da cidade. Primeiro no Orkut, depois no Facebook, até criar, em 2015, o blog Resgatando o Passado. Hoje, são mais de 31 mil imagens compartilhadas com a ajuda de centenas de colaboradores. O acervo, que já soma 15 milhões de visitas, inclui fotos minhas – testemunhos visuais do meu lugar na história da cidade.
O trabalho de Maurício é silencioso, mas não passou despercebido. Seu esforço de resgatar memórias e dar créditos a quem colabora já lhe rendeu reconhecimento e homenagens do município, valorizando a importância do que faz não apenas pela cidade, mas por mim também.
Entre as fotos que guarda, a que mais lhe toca é a de meninos brincando nas minhas margens. Talvez porque enxergue nela o reflexo da própria infância, ou porque seja a esperança de que eu possa, sim, voltar a ser espaço de vida e de encontro.

Hoje, infelizmente, luto contra a indiferença que causa tristeza e revolta ao Maurício. Em 2019, ao atravessar-me em uma das pontes que unem as minhas margens, ele registrou em fotografia todo tipo de lixo que boiava em mim e mais tarde escreveu sobre a dor de ver um amigo, como ele me chamou, sofrer em com o desprezo e o descaso.
– Muita gente fala de meio ambiente, mas poucos fazem realmente alguma coisa por ele.
A atitude do Maurício mostra que recordar é também cuidar. Ao resgatar as imagens do passado, ele lembra à cidade que eu não sou obstáculo nem paisagem esquecida. Sou parte da identidade de Juiz de Fora.
E só a colaboração – como aquela que sustentou o blog dele – pode me salvar da indiferença. Guardiões de memória me mantêm vivo, ainda que as aparências digam o contrário. Por isso, sigo acreditando que ainda posso ser visto, novamente, como rio de vida, um rio de muitas aldeias, o rio da sua aldeia.
O Paraibuna e a simplicidade poética de Alberto Caeiro
“O Rio da Minha Aldeia” é um poema de Alberto Caeiro, um dos muitos heterônimos – palavra de origem grega que significa “outros nomes”, do poeta português Fernando Pessoa, sendo Caeiro considerado o “mestre” dos demais.
Nascido em Lisboa, em 1889, segundo a biografia fictícia traçada pelo próprio Pessoa, Caeiro teria vivido quase toda a sua vida no campo, órfão de pais desde cedo, com instrução primária e sem profissão. Um homem comum, de traços simples, que via o mundo sem o peso da erudição e da complexidade intelectual.
No poema, o Tejo, o grande rio de Portugal, imponente e carregado de simbolismos históricos, é contraposto ao pequeno rio que corria pela “aldeia” de Caeiro. A mensagem é clara: não é a grandiosidade que importa, mas a proximidade, a intimidade e o pertencimento. O rio da aldeia é maior porque é mais livre, porque pertence a quem o vive de perto.

Longe de ser um curso d’água monumental, o Paraibuna guarda, porém, a mesma potência simbólica que Caeiro reconheceu em seu rio imaginário. Não é o mais extenso, nem o mais caudaloso, mas é o rio da nossa aldeia e justamente por isso tem valor inestimável.
Se visto apenas como paisagem comum, o Paraibuna corre o risco de ser reduzido à indiferença. Pneus, sofás e todo tipo de lixo descartados em suas margens testemunham essa negligência. Mas, se compreendido pelo olhar simples e profundo que Fernando Pessoa deu a Alberto Caeiro, o rio pode voltar a ocupar seu espaço de afeto, memória e identidade.
Assim como Caeiro representava a voz de um homem comum, o Paraibuna também pede para ser visto sem filtros grandiosos, mas com atenção ao essencial: é o rio que acompanha gerações, que moldou bairros e cidades, que guarda histórias de infância, enchentes, brincadeiras e sobrevivência.
O desafio é recuperar esse olhar. Se o Tejo leva a Portugal para o mundo, o Paraibuna devolve Juiz de Fora a si mesma. Ele não precisa ser maior, precisa apenas ser reconhecido como parte da vida. Como ensinou Alberto Caeiro, estar à beira do rio da aldeia é simplesmente estar com ele. Talvez seja nesse gesto simples que resida a chave para a sua proteção.
SAIBA MAIS
As fotos antigas compõem o acervo do blog Maurício Resgatando o Passado