“Dignificou todo o trabalho realizado”, analisa psiquiatra de JF que ajudou Michael no tratamento da depressão
Helio Fádel trabalhou com o jogador no Rubro-Negro e salientou à Tribuna a importância do tratamento emocional dentro dos clubes e o posicionamento de Michael no combate ao preconceito relacionado ao assunto; jogador fez agradecimentos públicos ao profissional
“Tinha dias que eu estava mal. Tinha dias que eu não tinha vontade de levantar da cama. Dava vontade de ficar deitado no chão de casa e (pensava) ‘não quero trabalhar hoje não’. ‘Ah, mas você tem tudo!’ Ter tudo não significa que você está bem. Era pelo clube? Não. Todos nós temos problemas na vida pessoal, com família, ou com você mesmo. E aí eu tenho que agradecer muito ao Marcos (Braz), Bruno (Spindel), ao meu psiquiatra, que é o doutor Helio (Fádel) (…). Porque foi terapia constante. Eram quatro vezes na semana com psicóloga, uma com psiquiatra. Tratando, tratando, porque nós (sic) não é robô não.”
Em sua despedida do Flamengo na última semana, o atacante Michael, 25 anos, que assinou contrato com o árabe Al Hilal, se emocionou ao lembrar de período em que apresentou quadro depressivo e agradeceu profissionais que o auxiliaram diretamente no tratamento. Um dos citados foi o psiquiatra juiz-forano Helio Fádel, profissional do Comitê Olímpico do Brasil (COB), que conversou com a Tribuna e exaltou a importância do relato do atleta também no auxílio à diminuição de preconceitos e barreiras que ainda persistem em existir. Além disso, o relato fortalece a busca para que a conscientização da importância dos cuidados com a saúde mental se estenda também após o fim da campanha Janeiro Branco, sobretudo em mais um ano de pandemia.
“Foi extremamente especial. Porque o nosso trabalho é muito intenso e todo feito nos bastidores. Quando um atleta de elite demonstra esse carinho e reconhecimento, é o momento em que temos a certeza de que todo e qualquer esforço por ele e pela profissão vale a pena. Nós, profissionais da saúde mental, compartilhamos das dores, dúvidas, angústias e vivemos juntos as frustrações do atleta – que é a grande estrela do espetáculo esportivo”, analisa Fádel. “Ser mencionado de forma autêntica em um depoimento tão emocionante, como foi essa despedida, dignificou todo o trabalho realizado e me dá mais motivação para seguir em frente. Se tratando de uma manifestação acerca de saúde mental, é mais especial ainda, pois ele ajuda a combater o preconceito relacionado ao tema. Como o Michael bem disse: não é porque você tem tudo, que está bem. Depressão, ansiedade e outros transtornos mentais podem acometer qualquer pessoa independentemente de sua classe social.”
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O tratamento presencial durou mais de um ano e meio, conforme Fádel, mas por questões éticas, naturalmente, não pode ser esmiuçado. No entanto, o psiquiatra confirma que a retomada do bom futebol – visto que Michael foi um dos destaques, se não o principal do Rubro-Negro em 2021 -, foi possível graças à dedicação do atacante ao priorizar os cuidados com sua saúde mental.
“Agradeço e parabenizo o Flamengo pela sensibilidade e naturalidade ao lidar com a situação desde o início. O contato constante com o Dr. Márcio Tannure, médico do clube (responsável direto por esse trabalho multidisciplinar) foi essencial. Mas é importante dizer que o maior mérito é do próprio atleta, que se comprometeu com o tratamento igual se dedicava aos treinos. Consequentemente, não apenas sua saúde mental melhorou, mas também o seu rendimento esportivo – tornando o Michael um dos jogadores mais produtivos do Flamengo na temporada passada”, ressalta Fádel.
Simone Biles, Medina e o sofrimento em silêncio
A desistência da principal estrela da ginástica no mundo, a norte-americana Simone Biles, de competir na Olimpíada de Tóquio para cuidar de sua saúde mental foi noticiada e discutida de forma ampla em todo o planeta. Na última semana, o brasileiro Gabriel Medina abdicou de participar da primeira etapa do Mundial de Surfe com justificativa que segue o mesmo caminho. “Por mais que eu queira estar na água surfando e competindo, eu não estou bem física e emocionalmente para isso. E reconhecer que cheguei ao limite tem sido um processo duro”, realçou o atual campeão mundial.
Situações como estas têm sido cada vez mais expostas e reforçam a importância da bandeira defendida, há anos, por Fádel e mais psiquiatras do esporte. Os casos de Simone Biles e Medina não são exceções diante de milhares de esportistas que sofrem calados e sem apoio profissional. “Não faltam exemplos de atletas de peso, renomados e consagrados, que externam questões ligadas ao sofrimento mental. Isso é apenas uma parcela pequena perto da imensidão de atletas de alto nível que sofrem em silêncio. Seja por uma estrutura de saúde mental ainda deficitária em suas redes de apoio ou pelo medo da exposição e da perda de credibilidade por serem considerados ‘pessoas fracas'”, explica o juiz-forano.
Estas redes de suporte mencionadas por Fádel, em sua grande maioria, ainda não contam com psiquiatras do esporte, por exemplo. As barreiras nesta inserção aos departamentos de saúde dos clubes e agremiações permanecem no cenário esportivo nacional. “Como psiquiatra do Comitê Olímpico do Brasil, vejo o futebol como uma das modalidades esportivas mais difíceis a se inserir a psiquiatria de modo preventivo e contínuo. Embora os gestores já demonstrem um entendimento maior sobre sua importância, ainda não conseguimos instaurar departamentos de saúde mental nos clubes, por exemplo – idealmente composto por psiquiatras e psicólogos. Mas isso vale para outras modalidades também, onde, infelizmente, a saúde mental ainda é vista como um “gasto extra” e não um investimento prioritário.”
O fim do Janeiro Branco
Com o fim do mês, a campanha Janeiro Branco – que busca conscientizar as pessoas sobre a relevância dos cuidados com a saúde mental – perde força, pelo menos na teoria. No entanto, é possível fazer com que essa visibilidade se estenda ao restante do ano e que barreiras sigam caindo para que a psiquiatria seja cada vez mais aceita e normalizada, especialmente diante do cenário pandêmico, em que há aumento de quadros de depressão e ansiedade.
“Deve-se falar mais sobre o tema e desmistificar crenças negativas a respeito da psiquiatria na vida das pessoas, não apenas no esporte. A pandemia escancarou a importância e a nossa dificuldade de mantermos a sanidade mental, seja para o nosso próprio bem e por aqueles com quem convivemos. Não à toa a busca pelos serviços de psiquiatria e psicologia aumentaram tanto. Mas será que precisamos esperar que mais pandemias venham para lembrarmos do tema? Será que precisamos aguardar mais atletas medalhistas olímpicos se manifestarem sobre sofrimento mental para só então tocarmos no assunto? Que possamos refletir mais, falar mais e fazer mais por algo tão primordial que é saúde mental do ser humano”, enfatiza Fádel.