A ironia de Tairone Vale em monólogo de estreia
Ator sobe ao palco sozinho pela primeira vez, em “Versão demo”, com direção do premiado Rodrigo Portella
Metade do ator é corpo, a outra metade é texto; metade é emoção, a outra, sensação; metade verdade, a outra, mentira. Metade do homem é construção, a outra metade, também. Quando Tairone Vale irrompe a cena vestido do diabo em sua conferência sobre como surgiu o livro mais vendido da história, seus olhos, seus verbos e seus gestos se voltam a essa construção, que transcende a própria consciência. “O texto tem uma pegada social e política, uma crítica já bem proeminente, e identificamos que essa seria uma grande oportunidade para retratar o que seria o lugar de fala do homem branco, cisgênero, heterossexual, classe média e cheio de privilégios sociais. Estamos num momento em que todo mundo está procurando o seu lugar de fala, cada grupo, cada segmento procura sua própria voz. Vimos que o texto já tinha essa carga de autocrítica pesada, e, nos ensaios, começaram a surgir mais ideias, e aprofundamos mais nisso”, conta o ator, que faz, nesta sexta, 26, no Teatro Paschoal Carlos Magno, sua estreia em monólogos, no projeto contemplado pela Lei Estadual de Cultura de Minas Gerais.
O texto de sua autoria é o fio condutor de uma narrativa preenchida por dramaturgias paralelas, que cortam, ampliam e questionam a conferência do tal anjo decaído. Citações de políticos, carta de um assassino, um poema do poeta chileno Nicanor Parra e outras odes ao patriarcado se enumeram ao longo do espetáculo no qual Tairone canta e toca violão. “São textos que retratam toda essa estrutura de poder vigente e nociva, inclusive, para quem oprime.”
Do catecismo da infância brotam as principais inspirações do autor/ator, dono de muita liberdade poética. “Não cito quem são os personagens, então você não vai ouvir que ele é o diabo, porque ele, de fato, é um ex-funcionário de uma grande empresa que resolveu escrever uma espécie de autobiografia. Ele dá uma palestra sobre esse livro que ele escreveu. Quando perguntam qual é o gênero da peça, dizemos: é uma peça-conferência. Está sendo muito doido. Eu opero tudo, som, luz e projeções. Tudo está comigo, como se fosse uma grande conferência, o que exige uma atenção para a técnica muito grande”, comenta. Para o diretor Rodrigo Portella, a estética corresponde ao discurso acerca dos “modos de manutenção de poder”. “Usei todos os recursos de uma palestra, de uma exposição de ideias. O cenário é composto por mesas, retroprojetor, microfones e luminárias. Ele controla tudo. Não temos um operador de som, de luz ou de projeções. O próprio Tairone faz isso de dentro do palco, o que faz essa metáfora do controle de tudo. Ao mesmo tempo, há um contraponto muito interessante: tudo é muito precário, não é um projetor multimídia, mas um retroprojetor com transparências em preto e branco muito toscas, o cenário é cheio de armários de aço sucateados, e isso mostra a crise do homem branco, que para mim é a grande questão”, pontua Portella, premiado por “Tom na fazenda” e festejado pela crítica nas recentes “Insetos” e “As crianças”.
O interesse, indica o diretor, está menos no mito do diabo com seu estereótipo chifre e mais nos contrapontos que desperta. O capeta na versão de Tairone e Portella tem pontos de interrogação no lugar de chifres. “É a dúvida, o questionamento, a desobediência, a criatividade, a pergunta”, diz Rodrigo, revelando sua real inquietação: “Estou mais interessado na construção que o diabo faz de um deus tirano, que é criado à imagem e semelhança do homem branco, cisgênero, ocidental, urbano. Fico pensando que esse diabo é uma oposição ao ‘homem de bem’, que legitima esse monte de barbáries que vêm acontecendo desde que o mundo é mundo, em nome de uma fé, de uma bondade cristã, que serve como máscara para um homem dominador, tirano e autoritário. O diabo é a antítese desse ‘homem de bem’, uma figura que não escraviza, não domina, não tiraniza, alheio a dinheiro e a poder. Esse diabo representa aqueles que são discriminados por serem minorias, mais fracos diante do poder legitimado pelo patriarcado, representa as mulheres, os negros e negras, os gays, personagens sociais que são colocados em segundo plano numa sociedade que alimenta um patriarcado histórico e milenar. Tanto é que Deus é o pai, e o filho dele é feito à sua imagem e semelhança com cabelos e olhos claros.”
Quem está falando?
Funcionário de uma grande corporação, número um, braço direito e favorito do chefe, o personagem da peça-conferência conscientiza-se sobre o que acontece na empresa e passa a considerar a viabilidade da denúncia sobre o que está errado. Assim nasce o embate forte de ideias que ganha o palco de “Versão demo”. Numa investigação sobre o subterrâneo (literalmente) da sociedade, o espetáculo se volta como um espelho para que o espectador perceba seu próprio lugar. “Tentamos subverter a ordem do diabo como representante do mal e deus como representante do bem. É nessa construção que se estabelece toda a filosofia ocidental, na ideia de mal contra bom, num maniqueísmo absoluto. Desconstruímos o diabo como a tentação, a carne, o fogo e deus como o céu, a infinitude, a bondade suprema, colocando em questão quem esse Deus representa”, aponta Rodrigo Portella, certo da urgência das palavras que Tairone carrega no corpo. “Quando ele me chamou para dirigir essa peça, eu pensei: ‘Meu pai! Nessa altura do campeonato, diante de tudo o que estamos vivendo, vamos colocar um homem branco, cis, em cima do palco, para falar o quê? Para quem? Porquê? Por quem? Pelos que já têm voz na vida? Precisamos dar voz para os que não têm, então pensei que nosso processo era o da autocrítica, nosso lugar de fala ali era o de criticar nossos próprios privilégios e contradições. Entendi que deveríamos olhar para a gente e para esse deus feito à nossa imagem e semelhança”, diz o diretor, assegurando não ter permanecido no discurso. “Esse trabalho realmente me modificou. Foi intenso e poderoso.”
Distante do juízo final, a peça, segundo Tairone Vale, foge dos julgamentos para acolher os fatos. “Tem coisas no texto que são opiniões do diabo, o narrador. Principalmente nessas inserções que trazemos, deixamos que o espectador crie suas conexões. Tem coisas que acredito que ele (o espectador) só vai conseguir ligar à sua própria maneira um tempo depois. Colocamos causa e efeito próximos um do outro sem explicitar. O importante nesse processo é abrir os canais de escuta, ouvir todos os lados, sem ficar na defensiva e sem fazer pré-julgamentos. Acho que quem chegar para assistir o espetáculo de ‘braços abertos’, preparado para absorver e refletir, vai se envolver”, aposta. E acrescenta: “Discutimos muito durante o processo sobre para quem estamos falando. E foi difícil responder a isso. Quando pensávamos que algumas pessoas poderiam não entender e precisávamos ser mais claros, testávamos até ficarmos muito didáticos. Então voltávamos, porque não podemos correr o risco de virar um manifesto. Não podemos perder a carga de fazer refletir através do sarcasmo e da ironia, esse é meu traço, uso disso o dia inteiro.”
O que estamos fazendo?
Em cartaz na telinha como Jáder, um vilão de “Se eu fechar os olhos agora”, minissérie global baseada na obra homônima do escritor e jornalista Edney Silvestre, Tairone volta aos palcos, lugar que forjou o ator que é. Para a cena, traz o que aprendeu nos últimos anos, quando atuou com cinema e televisão. “No meu desenvolvimento como ator, a escuta tem sido fundamental. Estar em cena com alguém, seja na TV, no cinema ou teatro, escutar a temperatura do outro, para eu responder de acordo com o quer eu recebo, tem sido muito importante. Agora meu canal de escuta teve que ser muito mais ampliado, porque preciso me escutar, escutar meu corpo, meu cenário, meu espaço e o público”, diz ele, negando toda e qualquer segurança. “Uma boa dose de insegurança e desconforto é essencial para deixar o jogo cênico vivo”, ri.
Para o ator, “Versão demo” é resultado, também, da generosidade do parceiro e amigo Rodrigo Portella, com quem convive profissionalmente há exatos dez anos (o primeiro trabalho juntos foi em “As bruxas de Salém”, com a Cia. de Atores Estação Palco, em 2009). “Como acabou entrando uma carga autobiográfica muito forte minha no texto, e como tem uma exposição muito grande minha, dos meus questionamentos e das minhas angústias, ele e a Mariah (Valeiras, assistente de direção) estão sendo muito cuidadosos em criar uma obra que dialogue com o que eles trazem e com a minha vivência, meus gostos musicais, meus pensamentos e minha forma de enxergar a vida”, comenta Tairone.
“Somos artistas e nesse momento estamos sendo marginalizados e apedrejados por uma sociedade extremamente ignorante, que tem colocado o artista num lugar muito ruim em função de ele ser, em primeiro lugar, uma pessoa criativa. Estamos retornando à ideia da tradição, não daquela que envolve nossa história e formação, mas daquela pela manutenção das coisas em seus lugares. Pessoas livres e criativas num mundo que precisa manter tudo igual não são bem-vindas. Não acredito que meu trabalho como artista é dissociado da minha luta como ser humano. Uma coisa é sequência e consequência da outra”, discute Portella, certo de que, na pele de deus ou do diabo, todo ator deve ser inteiro em todas as suas fragilidades e incômodos.
“Tudo o que eu queria falar se resume em duas regras mágicas que aparecem na peça”, anuncia Tairone. “Para saber quais são, só assistindo”, brinca e logo conclui: “Vivemos uma era de extremos como nunca imaginei que fosse viver, onde ninguém consegue ouvir ninguém, ninguém dialoga, todo mundo está na defensiva, num pico de agressividade e apontando o dedo para o outro como se fosse inimigo mortal. Muitas vezes, as pessoas não conseguem entender que as motivações e os desejos, de um lado e de outro, são os mesmos. É preciso responder de maneira solidária, humana e pacífica às questões de hoje.”
VERSÃO DEMO
Estreia nesta sexta, 26, às 20h30, no Teatro Paschoal Carlos Magno (Rua Gilberto de Alencar s/n – Centro). Temporada dias 27 e 28 de abril e 3, 4 e 5 de maio, às 20h30, no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas (Avenida Getúlio Vargas 200 – Centro).