Há 30 anos, cultura de Juiz de Fora passava por transformações com Cine-Theatro Central, Lei Murilo Mendes e CEMM
Em 1994, importantes espaços de cultura surgiam e se fixavam em Juiz de Fora; saiba os bastidores dessa história
Em 2024, é difícil de imaginar a cultura de Juiz de Fora sem o Cine-Theatro Central, um dos cartões postais da cidade, funcionando plenamente. Ou então sem o Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm), que realiza exposições de arte durante o ano inteiro, além de lançamentos e eventos acadêmicos. E, ainda, sem o Programa Cultural Murilo Mendes, que distribuiu só nesse ano mais de R$2 milhões para projetos culturais diversos. Mas nenhum desses elementos era garantido para a população juiz-forana como é hoje. Há 30 anos, a cultura da cidade não contava com esses aparelhos. Foi o ano de 1994 que reuniu efervescências artísticas locais e nacionais para fazer verdadeiras revoluções nas possibilidades que a cidade tinha – e que deixam marcas muito presentes ainda hoje e que pretendem continuar marcando a cidade por muitas décadas. A Tribuna conta as histórias e as difíceis negociações por trás da reivindicação desses espaços e de uma cultura mais democrática na cidade.
Essas histórias são guiadas por Rodrigo Barbosa, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e escritor, que naquele ano era superintendente da Funalfa. Com apenas 30 anos, ele assumiu o cargo e, já naquele momento, percebia que a cidade passava por sérias dificuldades no setor. Mas também percebeu a força que o momento podia ter, já que o setor cultural estava muito ativo e mobilizado desde os anos 1980, com o movimento “Mascarenhas meu amor”. “Havia uma efervescência e essa percepção entre os artistas de que era importante trabalhar em conjunto”, relembra. Ao mesmo tempo, foram aparecendo no poder público mais possibilidades de se falar em cultura para o público em geral, com ações em diferentes instâncias de poder para falar sobre o tema.
Não era só ele que pensava assim, mas um grupo de pessoas que estava disposta a pensar novas possibilidades de apoio à cultura em Juiz de Fora. “Foi um cenário muito positivo de interesse pela cultura e de percepção de que esse é um ativo muito forte da cidade, que merecia ser impulsionado.” Na mesma época, Itamar Franco assumiu a presidência da república. Era um momento de redemocratização. Morador de Juiz de Fora, ele também tinha a sensibilidade de entender a situação da cidade e serviria como um apoiador de dois dos grandes projetos que seriam feitos na época. “Não foi uma coisa articulada com a outra: foi uma coincidência das coisas estarem tramitando. Mas é um conjunto muito significativo de acontecimentos culturais em um mesmo ano”, conta Rodrigo.
Confira a cobertura da Tribuna em 1994
As inovações da Lei Murilo Mendes
Nos anos 1990, as leis de incentivo à cultura ainda eram uma novidade para todo o país. A primeira lei de incentivo foi criada pelo Ministério da Cultura em 1985 e a Lei Sarney foi sancionada em 1986 – mais tarde, ela se tornaria a Lei Rouanet. Em 1990, a primeira lei municipal surgiu, em São Paulo, chamada Lei Mendonça. Juiz de Fora, então, foi bastante pioneira nesse sentido: a cidade, logo em seguida, passou a ter em debate a própria lei de fomento à cultura. O autor desse projeto foi Vanderlei Tomaz, historiador, escritor e vereador na época. “A criação da lei teve como base a minha experiência pessoal, com iniciativas como o folheto Abre-Alas e o pessoal do Arte Cultura. A gente participava de vários eventos de sarau e recital de poesia, inclusive no Parque Halfeld. Era um grupo muito unido, mas que publicava com enormes dificuldades. (…) Uma vez vereador, vi que a gente podia criar um programa oficial para que essas facilidades acontecessem no meio cultural.”
Quando foi proposta, a lei seguia os modelos da que já existia em São Paulo, que funcionava no esquema de carta de crédito, com renúncia fiscal. O projeto cultural enviado era analisado e, se aprovado, o produtor proponente recebia um crédito em imposto e ia atrás das empresas que pagavam IPTU ou INSS, com a empresa doando para o projeto e, assim, deixando de pagar esses impostos. “A nossa avaliação inicial era que esse projeto, que a nível nacional faz muito sentido devido aos custos mais altos de imposto de renda, no nível municipal envolveria valores muito mais baixos e pulverizados. Então começamos a discutir como iria funcionar”, relembra Rodrigo.
Quando o projeto estava sendo discutido na prefeitura, Maria Helena Leal Castro, que era Secretária da Fazenda, surgiu com uma alternativa para esse modelo. Como seria feita uma renúncia de receita que seria recebida de INSS e IPTU, ela entendeu que podia ser feito o caminho contrário: ao invés de renunciar à receita, a prefeitura poderia colocar esse valor na despesa do município e criar um fundo de cultura que forneceria um aporte direto aos projetos. “Esse é o grande segredo de sucesso da lei. A cada ano o orçamento municipal ia portanto um valor X e redistribuindo o valor, variando de acordo com a gestão, mas sempre sendo discutido entre comissões. Logo a lei se tornou uma referência”, conta Rodrigo.
A ideia de Vanderlei sempre foi que a lei levasse o nome de Murilo Mendes, escritor que é uma referência em todo o país, para que permanecesse forte independentemente do mandato. E essa relevância começou a ser reconhecida. “Quando, em 2005, o Ministro da Cultura Gilberto Gil esteve em Juiz de Fora, fui buscá-lo no aeroporto, com mais um motorista e auxiliares da Funalfa. No caminho, ele falando comigo, disse: ‘Escuto falar muito bem da lei de cultura que tem aqui nessa cidade’. O rapaz que estava com a gente falou que o autor estava ali. Me apresentei e contei a história da lei”, relembra Vanderlei.
“Cine-Theatro Central, a emoção de todos nós”
O Cine-Theatro Central era uma prioridade para Rodrigo Barbosa e para o prefeito na época, Custódio Mattos. O espaço era propriedade de uma companhia distribuidora de filmes, mas estava fechado desde os anos 1980 – apesar de já ter o tombamento municipal. Na época, o Superintendente se lembra inclusive de já terem acontecido, nos anos anteriores, conversas sobre derrubar o espaço (acabando, portanto, com o tombamento) para construir um shopping em seu lugar. “Uma das táticas para isso era deixar o Central deteriorar, até chegar em um momento que falassem que não dava para recuperar. Era muito urgente tentar uma saída para que o patrimônio não se perdesse”, conta. Por isso, ele começou uma negociação para buscar fontes de financiamento para comprar o Central e criar um ambiente que favorecesse a captação desse dinheiro.
O valor de compra do teatro era de R$5 milhões, em uma época em que a cotação do real estava páreo com a do dólar. As negociações passaram a ser pedidas em Brasília, já que o município não teria condições de arcar sozinho com essa movimentação. Mas lá também havia dificuldades, como relata Rodrigo, mesmo contando com a boa vontade do então presidente. “Em uma das conversas com Itamar, ele disse que precisava estar respaldado, para não sair na imprensa que ele estava gastando uma grana comprando um teatrinho da cidade dele. A saída que a gente encontrou, então, foi buscar o tombamento federal, que muda de figura: vira um acervo preservado a nível nacional. A outra foi mostrar a importância do Central para o meio artístico e cultural”, conta.
Com essas duas frentes de ação, Rodrigo foi ao Rio de Janeiro fazer uma sustentação oral ao Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), que é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), para a tombação. “Não era uma defesa simples, porque a ideia de patrimônio cultural ainda era muito focada na arquitetura, e o Central, embora seja essa coisa linda, tem um estilo de arquitetura eclético, do início do século XX, que não é exatamente como esses grandes patrimônios estilo Ouro Preto da vida, do século XVIII.” O argumento utilizado, então, era novo na época: defender que se tratava de um patrimônio imaterial, ou seja, que tinha uma importância cultural que ia além da questão arquitetônica, porque representava para a cidade algo que estava sempre no imaginário coletivo e na emoção das pessoas. Para fixar essa ideia, Rodrigo foi atrás de artistas que conheciam o Cine-Theatro e poderiam gravar depoimentos falando da importância do teatro. Grandes nomes nacionais como Tom Jobim, Bibi Ferreira e Milton Nascimento participaram desse esforço em prol do teatro.
Foi então que Milton lançou a frase que daria o mote para as campanhas pela preservação: “O Central está na emoção de todos nós”. Foram adesivos para carro, broche para as pessoas usarem, cartaz e tudo. No entanto, burocraticamente, ainda era muito complexo que o governo federal transferisse recursos para a prefeitura comprar o teatro. “Então, a nossa ideia foi envolver a UFJF, através do Ministério de Educação, porque aí era possível aportar recursos e a universidade utiliza-lo para comprar o Central”, revela Rodrigo. Essa compra aconteceu em 1994. E imediatamente começou um projeto de reforma e reparação, que também sairia caríssimo.
O valor para conseguir devolver o brilho do Central era quase o preço da compra do imóvel. A jogada, então, foi em parceria com o Pró-música, que podia apresentar o projeto de restauração através da Lei Rouanet, para conseguir novamente angariar recursos. A necessidade era tanta que, só no momento em que o projeto começou, foi percebido que, no saguão da entrada do teatro, já havia uma pintura muito cuidadosa e bonita. “Debaixo de sete camadas de tinta encontraram as pinturas da época. Era uma raspagem delicada, e aí o trabalho foi muito complexo, para tirar com cuidado e depois restaurar”, diz Rodrigo. Para gerir o espaço, então, foi montado um comitê com nomes dos diferentes órgãos e até atuação dos estudantes.
Centro de Estudos Murilo Mendes
A negociação para adquirir o acervo do Centro de Estudos Murilo Mendes (CEMM), que se tornaria, em 2005, o Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm), também foi complexa – o acervo era disputado e continha obras de grande valor. Na época, quem precisava ser convencida era a viúva de Murilo Mendes, Maria da Saudade (mais tarde, ela veio à inauguração do espaço). Essa ação foi comandada por um comitê formado por Evandro Maia Costa, Arlindo Daibert do Amaral, Hélio Fádel Araújo Silva, Marisa Timponi e, mais tarde, Leila Barbosa.
A percepção de artistas e críticos da época, de que esse acervo era complementar ao do Museu Mariano Procópio, com doação do Alfredo Ferreira Lage, e que tinha grande importância para a cidade, foi fundamental nesse processo. O acervo do Museu, constituído pelo Alfredo, vai até o fim do século XIX, e o do Murilo abrange o período a partir da primeira metade do século XX. Na biblioteca, por exemplo, com mais de 2 mil livros e o acervo pictórico do poeta, encontraram um espaço para existir. Ter esse espaço possibilitou que o escritor juiz-forano continuasse a ser amplamente estudado na cidade, com seu trabalho disponível para pesquisas.
A cultura de antes e a cultura de agora
Servindo como um verdadeiro marco para a cultura de Juiz de Fora, o ano de 1994 já está distante. Mas o que deixou de legado ainda pode ser pensado e aprendido na atualidade. Naquela época, o trabalho, como conta Rodrigo, era de fazer o que era mais urgente para os espaços públicos e para a comunidade. “Precisávamos agir para recuperar um conjunto de circunstâncias importantes pela força cultural da cidade, mas que estavam em segundo ou terceiro plano. Tentamos fazer isso de forma que não fosse só isolada, mas que envolvesse a comunidade cultural.” Mas isso, como ele destaca, não pode ser o padrão. “Cultura não sobrevive só com salva-vidas. É preciso mais.”
Da mesma forma, Vanderlei Tomaz entende que a Lei Murilo Mendes foi passando por várias – e necessárias – transformações. “É muito legal ver, a cada edital da lei, a grande procura por inscrições. E no resultado estão sempre nomes diferentes sendo apresentados como vencedores.” Nomes como Marcelo Manhães foram lançados no Brasil, como escritores, devido à lei – o autor, hoje, se sustenta apenas com a Literatura, mas seus primeiros livros foram lançados por financiamento público. E, em 2023, Vanderlei esteve presente na Caminhada JF Negra, projeto que tinha sido contemplado pela lei, e que tinha proponentes com menos idade que o tempo de criação do projeto. Ele, então, entendeu que era justamente para essas novas gerações que uma lei assim deveria servir.
“Toda cidade tem a sua história e sua importância cultural. Mas temos aqui um conjunto de acervos, não só do ponto de vista histórico, na música, na literatura, nas artes plásticas e no teatro que é muito rico. Sem ser bairrista, mas já sendo, acho que é quase uma cidade de exceção”, acredita Rodrigo. Essa oferta de cultura através dessa história toda é rara: a lei de incentivo à cultura que rege Juiz de Fora ainda é inovadora. Muitas cidades de mesmo porte ou até maiores ainda não contam com possibilidades assim. O grande desafio atual, para Rodrigo, é continuar estimulando e conquistando novos espaços e caminhos, inclusive com a ocupação e valorização daqueles que já existem. “É criar políticas que valorizem essa história e coloquem o Central, o Mamm e todos os outros como referências, para inclusive projetar a cidade, aproveitar toda a riqueza cultural que a gente tem. Ainda tem muita camada de tinta tapando um monte de coisa dessa história.”
Tópicos: cine-theatro central / história de Juiz de Fora / Murilo Mendes