Campanha ‘Mascarenhas, meu amor’ completa 40 anos
A mobilização teve teve início em 1983, quando artistas se uniram com o intuito de transformar a fábrica Bernardo Mascarenhas em espaço cultural
“A ideia de se gravar esse debate é para que se tenha uma memória do que foi visto hoje, da forma como as pessoas viram o movimento que se teve hoje na cidade. E eu gostaria de pedir ao (Luis) Passaglia que talvez abrisse o debate dizendo o que foi feito na cidade e em que pé as coisas estão”. O então diretor-geral da Funalfa Reginaldo Arcuri dá as boas-vindas. No fundo, um burburinho de vozes conhecidas. O Passaglia, arquiteto, assim que pega o microfone – cujo o único objetivo é mesmo registrar a reunião em um gravador, já que, no lugar, não havia alto-falante – prefere falar da situação de uma forma mais abstrata. Fala que é difícil sintetizar o que foi visto em Juiz de Fora naquele dia. Mas, por fim, afirma: “Esse movimento pró-Bernardo Mascarenhas, na medida em que ele surge de uma reivindicação das bases, demonstra e se constitui mais um desafio, de um processo longo que vem sendo marcado por lutas e derrotas, que não podem ser omitidas”.
No fundo, alguém diz: “A Rachel quer falar”. E Rachel Jardim é quem toma o microfone. “A cidade é uma grande forma, uma grande escultura, todas as peças integradas. Na medida em que você mexe em uma dessas esculturas, desarticula a cidade de um modo geral. Qualquer intervenção urbanística em uma cidade é importante porque modifica o uso da cidade”. Depois, discorre sobre a importância dos escritores, como ela, na construção da memória da cidade. E mais um tanto de outros nomes das artes juiz-foranas pegam o microfone, falam sobre a produção cultural do município – e tudo com um motivo único: confirmar que era de suma importância que a Fábrica Bernardo Mascarenhas fosse transformada em um centro de cultura. Que o espaço, no coração da cidade, fosse preservado pela cultura. A ideia daqueles artistas que se reuniam constantemente a partir de 1983 era mais que simplesmente tombar um prédio que se encontrava em ruínas. E o escritor Rubem Fonseca afirma isso, em seguida: “Ninguém vai querer fazer um museu da fábrica Mascarenhas. O que se quer fazer daquela fábrica é um centro cultural dinâmico, que faça com que a cidade se revitalize e que possa produzir bens culturais e ao mesmo tempo melhorar a qualidade de vida dessa cidade”.
Esse áudio, pertencente ao Acervo do Museu da Imagem e do Som, sob os cuidados do Setor de Memória da Funalfa, é um dos poucos registros das vozes dos participantes do movimento e que, naquele ano, de uma efervescência de um movimento que uniu os artistas e a cidade inteira com um foco muito bem definido. Essa reunião foi gravada depois de uma passeata por outros prédios de Juiz de Fora já tombados. Os artistas se encontraram para discutir o que tinha sido feito até então e mais o que se pretendia. E eles decidiram gravar porque sabiam que se tratava de um episódio que ficaria marcado na história da cidade. Tanto que, hoje, 40 anos depois do começo dessa luta, essa história é recontada. E o movimento “Mascarenhas, meu amor” segue sendo um dos mais importantes da cultura municipal.
Coração em ruínas
Foi 1983 o ano em que essas ações pró-Bernardo Mascarenhas tomaram fôlego e, realmente, os rumos daquele prédio foi decidido. E isso começou quase que despretensiosamente. Jorge Sanglard, na época, era diagramador e jornalista na Tribuna. Ele conta que, em uma apuração para uma matéria do jornal, passou pela então fábrica e ficou pensando no estado em que ela se encontrava. “E eu quis levantar essa história, porque sabia que era o mais importante de Juiz de Fora. E eu comecei a pesquisar e tinha pouca coisa. Fui atrás das pessoas que trabalhavam lá para conhecer a história. Por sorte, eu achei algumas pessoas que ainda estavam vivas. Pessoas que viram o crescimento do Mascarenhas. E o dia que eu entrei lá e estava tudo destruído foi um choque. Acho que um dos maiores choques que eu já tive até hoje. Você pensa como a cidade permite deixar um prédio histórico daquele jeito. E na cara de todo mundo, a história estava sendo jogada no lixo.”
Guilherme Bernardes, o Gueminho, ator que já atuava no Teatro de Quintal, também teve a oportunidade de ver a fábrica nessa situação, e afirma: “Quando a gente conseguiu ver o interior do Mascarenhas era uma imagem de catástrofe, de guerra. Um prédio desse tamanho, com todo seu peso para a história, aos pedaços. Existia uma casca. E a gente fez esse trabalho de mostrar. Porque as pessoas não estavam vendo sua própria história sendo perdida. Foi importante causar esse choque, esse impacto”. Sanglard, na época, assinou uma matéria para a Tribuna, com fotos de Humberto Nicoline, mostrando como o prédio estava e levantando sua importância para a história de Juiz de Fora. E foi dessa forma que o estado do imóvel foi divulgado na cidade. “A fábrica era como se fosse invisível. Então, tinha que entrar e mostrar como estava destruído, porque assim vai começar a reação”, afirma Sanglard.
Gueminho relembra que, nessa mesma época, a prefeitura da cidade se preparava para dar início à construção do Teatro Paschoal Carlos Magno. “O prefeito, na época, era o Mello Reis, e ele tinha a ideia de fazer um teatro italiano convencional. Eu era contrário a essa ideia e houve um certo confronto. A gente trouxe à cidade um técnico para avaliar a construção do teatro. E ele foi contrário. Falou que não tinha justificativa para a construção de um novo, quando existem tantos prédios que precisam de recuperação e podem virar espaços culturais”. Pronto. Essa fala ficou na cabeça deles, que já pensavam na revitalização do Mascarenhas. “O prédio estava caindo e seria demolido. A gente passou a pensar nas formas de fazê-lo resistir”. Começou a se pensar, então, em como sua recuperação seria feita.
Da ideia ao nome
Já se sentia na cidade que faltavam espaços culturais. E mais espaços de produção, fabricação e ensaio que de apresentação. Os artistas, na época, eram unidos. Conversavam entre si as ideias que poderiam melhorar a vida de forma conjunta. E perceberam que a fábrica, daquele tamanho, seria o suficiente para abrigar todos os tipos de arte. Sanglard, em uma de suas matérias, escreveu: “Para os produtores culturais, o prédio da antiga fábrica é o único lugar capaz de abrigar todas as manifestações artísticas e culturais da cidade, não só por suas características físicas e ambientais, como por sua capacidade de receber um público amplo e diversificado”. A partir dessa conjuntura, as reuniões passaram a acontecer e, cada vez mais, os artistas iam somando na manifestação.
Era preciso, primeiro, que o movimento tivesse um nome para, com isso, ter um apelo. Tinha que ser um nome que pegasse facilmente e deixasse claro que a fábrica era um lugar de afetos. “Eu lembro do caminho que fiz, na época, porque o nome precisava ter amor e afeto. A gente precisava olhar para ele com amor. Então, ‘Mascarenhas, meu amor’ a gente criou essa conexão afetiva com o espaço. Ela é parte do impulso, porque envolve as pessoas, emocionalmente. Não é só racional”, explica Gueminho. E Sanglard concorda: “A gente precisava de um simbolismo forte. Uma coisa que linkasse a cidade com o Mascarenhas. As pessoas amam ali porque era onde pulsava a cidade. As pessoas viviam dali. Tinha uma relação de vida e amor. O meu amor, esse simbolismo era mais diluído e dava para pensar em muita coisa. É uma síntese do movimento que ajudou a dar liga”.
Para as ruas
Em abril de 1983, a questão entre o Paschoal e o Mascarenhas ainda estava forte, como mostra uma matéria de Sanglard, que já dava o caminho do “Mascarenhas, meu amor”: “A luta apenas começou e muita água vai rolar por baixo da ponte”. Em pouco tempo, mais especificamente em maio, os artistas perceberam que era preciso que a população em geral abraçasse essa campanha. “A gente entendeu que era importante levar a campanha para a cidade. E tinha que ser a partir de um vínculo afetivo com o patrimônio”, lembra Gueminho. E, em 27 de maio, a Tribuna noticiava: “A campanha ‘Mascarenhas, meu amor’ será levada às ruas esta semana, sendo lançada oficialmente no sábado com atrações artísticas e culturais, na calçadão da rua Halfeld”.
Mais que simplesmente percorrer as ruas, os artistas precisavam de símbolos que iam além do próprio nome. Um desses símbolos é o cartaz criado por Jorge Arbach, que usa do próprio prédio para simbolizar o que se queria. O arquiteto e artista plástico conta que ele atuou diretamente fazendo essas artes que estamparam de adesivos a bottons. “O Arbach foi uma das essências do movimento. Ele sintetizou tudo nela (na arte). A imagem é muito forte. O primeiro impacto é dela”, acredita Sanglard. Outra matéria da Tribuna, em julho de 1983, mostra o tom em que as passeatas eram feitas. O título, abaixo da imagem que consta a maioria dos nomes à frente do movimento, sintetiza: “JF defende patrimônio com amor e alegria”. A legenda: “Uma demonstração de amor pela preservação dos prédios antigos e pela cultura da cidade”.
E Sanglard lembra desse sentimento: “A gente queria sensibilizar as pessoas para a importância do que a gente estava fazendo. E como vai fazer isso de cara feia? A gente queria inverter o jogo: levar as pessoas para a rua, fazer festa e comemorar. A passeata era muito alegre. A gente só queria resolver a situação, mas comemorando. As nossas passeatas tinham tudo: tinha grito de guerra, canto, tudo. Protesto. Os cartazes. Som era caro. E ninguém tinha grana. O cartaz e o grito não têm preço”, lembrando que, na época, a ditadura, mesmo que mais branda, ainda existia.
Em nome de
Para oficializar a campanha, entendeu-se que era necessário fazer um abaixo assinado. O prédio pertencia, na época, ao estado, ao Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social (IAPAS) e à Receita Federal. Para que a prefeitura tomasse posse, era preciso que todos esses “donos” abrissem mão da posse para que a prefeitura pudesse primeiro reformar e, então, abrir o sonhado espaço cultural. Eles fizeram a carta e centenas de pessoas de todos os lugares do Brasil assinaram. Eles decidiram, também, que seria importante entregar essa carta ao então governador Tancredo Neves. “Tancredo veio a Juiz de Fora para alguma coisa. E a gente dava esses botes, quando tinha autoridade, alguma coisa, a gente ia atrás”, conta Gueminho. E Sanglard completa: “E a gente teve a ideia de entregar a carta em público, de uma forma que a entrega da carta fosse o compromisso dele de ver o que estava acontecendo, e cobrar uma resposta”. A Tribuna também noticiou o fato, e Sanglard escreve: “Com a entrega da ‘Carta da Mascarenhas’ ao Governador Tancredo Neves e a grande adesão dos setores culturais em apoio à campanha pela recuperação do prédio da antiga fábrica e sua transformação em um centro de cultura, os artistas e produtores culturais esperam ter dado um passo decisivo na campanha ‘Mascarenhas, meu amor’. (…) Com base na reação do Governador quando recebeu um grupo representando o movimento e a partir de sua declaração de que apoia a pretensão dos artistas, a campanha, a partir de agora, toma um caráter mais abrangente, uma vez que para se concretizar um projeto desta natureza e deste porte é fundamental o apoio de todas as camadas e setores da sociedade. Assim, o documento contendo as reivindicações dos setores culturais da cidade continua recebendo adesões e apoio”.
Ou isso ou aquilo
Por causa da adesão e da pressão, as instâncias todas, realmente, deram a posse do imóvel à prefeitura. Precisava, então, que o lugar fosse, finalmente, revitalizado. As formas de chamar atenção para isso foram várias. Inclusive, já usar o prédio como deveria ser usado, para a cultura. Foi o que aconteceu no lançamento do livro de Arbach, como ele conta. “Fiz questão de lançar o ‘Penso, logo insisto’ lá dentro das ruínas da Mascarenhas. Fiz isso para chamar ainda mais a atenção para o espaço e já começar a dar uma ocupação cultural para o espaço. Foi um evento marcante em favor do movimento. Mobilizou o meio cultural e político. Foi muito significativo, muito simbólico. Pois, foi o primeiro evento cultural dentro do espaço.”
E, como deveria ser, foi por causa do Teatro Paschoal que, finalmente, a obra do CCBM começou. “A prefeitura começou as obras do Paschoal, no começo dos anos 1980. Quiseram os deuses do teatro que a obra do Paschoal fosse embargada. Porque, quando eles começaram a cavar para fazer o prédio, o terreno desceu. O morro ali é em camadas, e as obras racharam quase todos os prédios da Halfeld. Quase todo dinheiro da obra foi gasto na indenização. Acabou o dinheiro. A cidade estava diante de: ou pega mais dinheiro e faz o teatro ou revitaliza o Mascarenhas. O Tarcísio (então prefeito) fez uma assembleia pública, com a classe artística, e perguntou o que a gente queria: Paschoal ou Mascarenhas. E foi unanimidade o Mascarenhas. Isso foi resultado da campanha”, conta Gueminho.
O fim?
Diante disso, foi se percebendo que a campanha foi perdendo força. Afinal, eles já tinham conseguido o queriam: que a fábrica fosse revitalizada e transformada em centro de cultura. As obras só terminaram em 1987, com a inauguração do espaço. Já na reunião de 1983, as falas, como o caso era praticamente ganho, já inclinava para a administração do espaço cultural depois de pronto. E Gueminho, há 40 anos, disse coisas que se repetem em sua frase de agora: “Resta, que me parece que é o passo seguinte do movimento, começar a discutir o que vai ser feito naquele espaço, quem vai cuidar daquele espaço, quem vai administrar, quem vai zelar por aqui, de modo que ele seja realmente a realização desse projeto que vem trazendo até aqui, durante cinco meses, essa bela campanha. Eu espero que os pais das crianças possam cuidar dos seus filhos. O movimento tem vindo até aqui, tem se organizado espontaneamente e eu nunca presenciei um movimento com esse vigor, que tenha durado tanto tempo em torno de uma causa e que tenha reunido tanta gente”. Ele afirma que, realmente, no começo, o já Centro Cultural Bernardo Mascarenhas tinha um conselho gestor que tinha um representante de cada setor da cultura. Isso durou um tempo.
A luta, agora, é outra. “O grande sonho sempre foi esse: que aqui fosse uma fábrica de cultura. A gente sabe que é relativamente simples conseguir um lugar para apresentar. Mas a grande carência é o lugar do ensaio. A gente precisa disso aqui voltar a ser um lugar de mais ateliês, espaço para dança, teatro e acontecimento. A máquina voltar a funcionar. A usina mesmo. A Mascarenhas 2.0 podia ser a usina cultural, de criatividade, incubadora de projetos. É o futuro que eu quero e espero que seja rápido”, finaliza Gueminho.