Paulista Rodolfo Lima traz à cidade sua busca por um teatro gay
O ator nos tempos do cólera: Rodolfo Lima apresenta seu retrato de margens sociais, referenciado na literatura contemporânea brasileira e confrontado com os discursos de ódio
Rodolfo não fuma. Alice fuma muito. Para ambos, o exemplo da mãe. Rodolfo é Alice quando começa “Réquiem para um rapaz triste”. E Alice poderia ser a mãe de Rodolfo Lima, inspiração do ator para a composição da personagem. E o cigarro era imprescindível para a composição. “Hoje já não tenho 20 anos. Num fim de semana de apresentações, fumo um maço. E quando chega segunda-feira, meu peito está chiando, a garganta está arranhada”, ri em sua defesa de um lugar onde a arte se espraie na vida. “A exposição é algo que defendo no trabalho do ator. A ideia é que, como artista, você consiga se desligar das amarras para estar em cena. O que você pode dar para o outro? Para o outro sair de casa, sentar e assistir a um trabalho? O mínimo que o espectador pode ver é o artista dando tudo de si, sendo sincero. Assim, meu teatro entende que não existe a quarta parede, sou eu, cara a cara com a plateia”, diz ele, que se apresenta neste domingo, às 20h, no Museu de Arte Murilo Mendes e, nesta segunda e terça, ministra a oficina “Em busca de um indivíduo cênico”, na Casa de Cultura. Na sexta, 17, às 20h30, Rodolfo dá tudo de si em “Bicha oca”, no Teatro Solar.
As duas montagens – e as outras três que compõem sua trajetória no teatro – partem da literatura. Que por sua vez parte das margens dos dias. Enquanto “Réquiem para um rapaz triste” apresenta uma solitária Alice que reúne as personagens femininas de Caio Fernando Abreu, gaúcho morto em 1996, “Bicha oca” reúne contos de Marcelino Freire, pernambucano radicado em São Paulo, para criar o velho e também solitário Alceu. “Ao adentrar o universo do Caio e do Marcelino, esse lugar arenoso da solidão, da falta de amor, da violência, do preconceito, do vício, fico tocado. O que fiz, com o passar dos anos, foi não fugir dos problemas. Costumo dizer que cresci com eles e consegui amadurecer assim. As pessoas me veem em cena e, por estarem muito próximas, têm dificuldades em me separar dos personagens. Isso me traz várias questões, das mais íntimas às mais poéticas. Como artista, confesso: a minha realidade, os meus problemas também são alimentos que levo para a cena. Se me sinto solitário ou sofro de amor, jogo para a cena. O teatro, nesse sentido, é a minha renovação”, pontua o ator paulista, que se põe a fumar vestido numa camisola azul para dar vida a Alice e também às próprias lembranças.
“Minha primeira memória de infância da minha mãe é dela se separando do meu pai. Eles eram muito jovens. Ela tinha 26 anos e sofreu muito com a ausência dele. Lembro, criança, de vê-la jogada no sofá, fumando e ouvindo Roberto Carlos. Ela usava uma camisola azul-marinho. Minhas lembranças iniciais são dessa mulher solitária, que nunca se casou novamente, se recusou a ter outro homem, e viveu para os filhos. Minha mãe ouvia músicas da Jovem Guarda e sempre foi muito dependente do cigarro. A bolsa que uso em cena é dela. Tem um momento em cena em que leio livros tipo ‘Júlia’, ‘Bianca’, e ela passou anos lendo esse tipo de literatura. Quando ela viu a peça pela primeira vez, se identificou bastante. Minha mãe é o estofo da criação dessa personagem, que é decalque, não é ela, mas poderia ser”, comenta Rodolfo, que se enche de uma maquiagem borrada e se despe das pirotecnias do palco justamente para borrar a própria compreensão do teatro. “Sou um ator que faz com que o teatro ocorra no meu corpo. Os dois trabalhos têm uma estética crua, trazem o público para perto, não possuem artificialismos de iluminação ou trilha sonora. As pessoas sentam diante de mim, e eu construo as personagens no meu corpo.”
Ainda que pareça flertar com a espontaneidade, com a potência do instante, o trabalho de Rodolfo ancora-se sobremaneira na reflexão. É pensado, deglutido e digerido, até ser concebido. “Tem um pouco do teatro pobre, defendido pelo pesquisador (e diretor) Jerzy Grotowski, e um pouco da questão performática, além de dialogar com o teatro narrativo do (dramaturgo Bertolt) Brecht. Nas duas peças estou, no final das contas, narrando. Meu processo está na forma como me desnudo em cena”, resume, dizendo que hoje, aos 40, passados 16 anos de sua estreia, tem a consciência de escolhas tidas intuitivamente. “Agora consigo avaliar com outros olhos e perceber que uma escolha é que todos os meus trabalhos tenham por objetivo maior fugir do artificial. Essa música precisa para quê? Essa roupa precisa para quê? Essa luz precisa para quê? Tenho pavor de cenas em que as pessoas colocam luz ou música para preencher, e o trabalho do ator vai para o saco. Tenho muita vontade de fazer um trabalho com uma iluminação bonita, mas falo para meu alunos: não adianta ter as bengalas do figurino, iluminação, trilha e muitas outras, se as pessoas não acreditam em você. Quando vou para a cena, dou tudo de mim”, afirma. “Quero oferecer uma experiência estética e tocar. Não quero que me achem bom ou mau ator. Não quero que achem minhas peças as melhores do mundo. Quero que sejam tocados e se emocionem comigo.”
‘A existência da peça já é militância’
“Veja só que ironia, é como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, ridícula.” O trecho com que Alice, personagem de “Réquiem para um rapaz triste”, inicia o espetáculo está em “A dama da noite”, um dos mais conhecidos contos de Caio Fernando Abreu. Nele, uma voz feminina se põe a refletir sobre assuntos como desigualdades, abandono, desamor e Aids. Logo em sua primeira fala, a personagem apresenta-se deslocada. Nesse lugar, do mais pleno desconforto, está o interesse de Rodolfo Lima. Além de seu primeiro trabalho, “Réquiem”, e do último, “Bicha oca”, montou outras duas peças baseadas em textos de Caio F. – “Todas as horas do fim” e “Cerimônia do adeus” – e “Desamador”, adaptação das crônicas de Fabrício Carpinejar. Do lugar do desconforto, ele partiu para a escrita de uma obra coerente e coesa. “Eu me sentia estranho, não tinha dinheiro para fazer um book, me via feio e não me enquadrava em lugar algum. Então, chamei uma amiga, e montamos uma peça. Nasceu ‘Réquiem’. Eu queria falar das minhas referências de mulheres, em especial da minha mãe. A peça surgiu do meu deslocamento e do meu desejo de ter um trabalho próprio, de criar uma estrada. O trabalho estreou em 2004, e eu nunca parei de fazer de lá para cá”, recorda-se.
A relação com a literatura, observa, está intimamente ligada ao poder de atualidade que os textos preservam e que sua presença na cena desejava. “O Caio Fernando Abreu é minha leitura de cabeceira, meu autor preferido. Com o passar do tempo, ele foi redescoberto, porque é um escritor que morreu em 1996. O teatro potencializa muito a obra dele, que está sempre sendo montada. Ele sobreviveu por ser muito atual. Como escreve de forma muito direta e pessoal, num mundo em que cada vez mais é um mundo impessoal, é natural que ao ler a obra dele emergimos num universo atípico. Há vários textos que têm personagens gays, das crônicas às cartas, em que ele é narrador e personagem. O Caio tinha certa relutância com o rótulo de autor gay, não queria ser reconhecido assim, mas é um nome muito significativo se pensarmos em literatura gay nacional. Assim como é o Marcelino Freire, que tem a questão da sexualidade nos textos”, diz ele, cuja pesquisa acadêmica frequenta os mesmos espaços. “Pesquiso essa relação entre teatro e homossexualidade desde a faculdade. Minha formação original é em jornalismo. Trabalhei tanto na iniciação científica quanto no mestrado o teatro gay. E ‘Em busca de um teatro gay’ é o título da minha pesquisa para o doutorado, no qual pretendo mapear a produção gay na cidade de São Paulo dos anos 2000”, explica.
No repertório de sua investigação, encontra-se, em destaque, “Bicha oca” e sua existência polêmica. “É um trabalho bastante relevante no meu currículo. Lembro-me de ter apresentado em Cubatão, e estamparam na capa do jornal: ‘Bicha Oca chega à cidade’. Um amigo me falou: ‘Rodolfo, essa capa é histórica, porque estampou na capa de um jornal a palavra bicha sem que ela estivesse associada às questões do crime’. Por isso, entendo que a existência da peça já é, por si só, um trabalho de militância. Sou objeto e objetivo da minha pesquisa”, afirma Rodolfo, que tanto na arte quanto na vida reflete e faz refletir sobre os preconceitos nossos de cada dia. “Por mais que a gente viva numa sociedade cada vez mais libertária, com Pabllo Vittar e outras artistas que gritam suas não-heteronormatividades, vejo que sempre vai haver pessoas que lidam mal com suas sexualidades. E textos de pessoas que não conseguem se assumir, são violentadas ou reprimidas, devem sempre existir. Por isso, a obra do Caio vai se manter atual, porque essas pessoas vão continuar existindo. Não é todo mundo que consegue ter uma postura libertária, assumida, com a identidade expressa de forma autônoma. No Brasil, ainda há cidades onde as pessoas não podem ser o que desejam. E a obra do Caio dialoga com essa realidade. Vai demorar muito até o dia em que consigamos lidar com as questões da sexualidade e da expressão de gênero naturalmente”, defende o ator.
Todo cancelamento será perdoado
Cancelada no dia de sua estreia no Castelinho do Flamengo, no Rio de Janeiro, “Bicha oca” reuniu-se, em outubro de 2017, a tantas e tantas produções a que o Brasil assiste, nos últimos anos, tornarem-se alvo de discursos conservadores, radicais e silenciadores. “A peça existe há nove anos. Nesse período, sofreu preconceito em alguns lugares, muito por causa do nome. O episódio da censura no Rio de Janeiro aconteceu num espaço em que havia várias atividades. E acho que o que detonou não foi especificamente a peça. A produtora local estava preocupada, tinha sugerido que eu abafasse certas cenas, por medo de represália. O que detonou foi a exposição de fotos. No espaço que aconteceria a peça, eu havia permitido que houvesse uma exposição de fotos de homens trans. Eram fotos de nudez, cerca de três, e isso foi a gota d’água”, conta Rodolfo, testemunha do ódio e das redes de afeto que também se alastram.
“Por medo de uma resposta violenta do Crivella (prefeito do Rio de Janeiro), a própria gestora do espaço resolveu proibir toda a programação. Confesso que isso, para mim, foi excelente. Ganhei a publicidade gratuita do trabalho e fui acolhido por dois outros espaços: a casa Nem, que atende travestis e transexuais, e a Sala Baden Powell. O público compareceu em peso nesses lugares, as pessoas queriam assistir e entender porque havia sido censurada e ainda queriam pagar o ingresso inteiro. O retorno foi incrível. Fiz cinco apresentações lotadas”, recorda-se o ator, para em seguida concluir: “É uma característica do meu trabalho sofrer o preconceito, que vai abaixo quando as pessoas assistem às peças. O que faz a ‘Bicha oca’ não ter morrido no caminho é que as pessoas foram vendo e indicando. É importante que existam trabalhos que provoquem o público mesmo que resultem em cancelamentos, que é o que acontece com a peça da Renata Carvalho, ‘O evangelho segundo Jesus, rainha do céu’. Falo para ela que o fato de a peça gerar burburinho e não conseguir ser apresentada já é um acontecimento.”
RÉQUIEM PARA UM RAPAZ TRISTE
Neste domingo, 12, às 20h, no Museu de Arte Murilo Mendes (Rua Benjamin Constant 790 – Centro)
BICHA OCA
Na sexta, 17, às 20h30, no Teatro Solar (Av. Itamar Franco 2.104 – São Mateus)