Outras ideias com Marlene da Silva Duarte
“Pisa aqui”, sinaliza Marlene da Silva Duarte, arrastando um tapete para debaixo dos meus pés. Segundo ela, o lugar é frio demais. Seu escritório, na parte posterior da loja Boutique dos Automóveis (Rua Santa Rita 463), tem o mesmo piso vermelho, impecavelmente limpo e brilhante. No espaço, os móveis se espalham suspensos do chão por pequenos módulos, numa organização milimétrica. Já na parte da frente, calotas e outros acessórios de carros se enfileiram da mesma forma em que se encontravam no dia 13 de abril de 2002, data na qual a empresária de 77 anos decidiu cerrar as portas, devido à crescente violência na cidade. Violência que conheceu na pele desde que começou a trabalhar.
“Minha loja sempre foi limpa. É um piso pobre, humilde, mas sempre fiz questão de manter varrido. Não sou maníaca, mas só lido com gente boa. Fiquei famosa por ser a dona da loja que não pode pisar. Uma bobagem. Jogavam no chão tinta, óleo, azul de metileno e, até, ácido. Me jogavam saco de lavagem, ovos e escarravam no meu rosto. Já teve dia de eu ter de fechar a loja para tomar banho. Eu ligava, o dia inteiro, para a rádio patrulha”, lamenta. “O freguês entrava, punha o carro, eu passava um pano no piso e ia trabalhar. Não ficava obstinadamente areando o chão”, recorda-se, negando o que se tornou lenda. “Nunca proibi ninguém de entrar na loja. Seria muito burra se fizesse isso. Comprei imóveis com esse trabalho e enfrentei arame farpado, cacos de vidro, as piores ameaças, só por trabalhar. Não deixava entrar baderneiro, só isso”, diz a senhora de aparência frágil, mas gestos e fala bastante firmes. “É saudável querer um piso limpo. Não vou deixar minha loja suja porque as pessoas se incomodam.”
Sui generis
Nascida em Eugenópolis e criada em Barão de Monte Alto, Marlene, neta de imigrantes portugueses, cresceu ao lado de 12 irmãos, todos homens. Ainda muito jovem, foi morar em Itajubá, com um irmão, quando aprendeu a fazer a capotaria para um Fusca. Aos 15 anos, mudou-se para a casa de tios em Juiz de Fora. Na expectativa de se tornar independente, foi morar numa república e, enquanto fazia cursinho para um concurso público, começou a fabricar capas para carros. Inicialmente fornecia para a loja de um amigo na Rua Santa Rita. Pouco tempo depois, com o fechamento do negócio, alugou o mesmo espaço e montou sua empresa. O ano era 1965. “Queria um nome sui generis, como Capas Procar, e registrei como Boutique dos Automóveis. Pagava um aluguel absurdo. Por isso, trabalhava dia e noite, domingos e feriados”, gaba-se. “Naquele tempo, a mulher era muito vigiada, policiada. Havia muito puritanismo. O máximo que se fazia era ser professora primária. Eu era uma aberração.”
Sapato nº 31
Num meio completamente dominado pelos homens, Marlene manobrava os carros, estacionava-os dentro da loja e mostrava o conhecimento de cada peça. “Fui muito pichada como sapatão, mas como seria sapatão se calço 31?! E nem amigas a tiracolo eu tive. Todo o preconceito se deu por causa do ramo arrojado. Tudo o que conquistei foi no enfrentamento”, emociona-se ela, por diversas vezes reconhecida como uma resistente ao machismo nosso de cada dia. Na luta diária, a senhora de fala refinada e andar elegante também conquistou amigos. “Um dia eu estava na porta e perfilaram nove motocicletas na frente da loja e fizeram continência para mim. Senti-me uma rainha”, comenta, aos risos. E conquistou corações. “Sempre fui muito cortejada. Todos me cantavam, juiz, gerente de banco, general. Tinha corpo de miss: 92cm de busto, 92cm de quadril, 56cm de coxa e 56cm de cintura. Um corpo violão.”
Alta gala
“A Boutique não está fechada, só não está de porta aberta”, diz Marlene, para logo explicar que, com o passar dos anos, todo o estoque da loja tornou-se raro. Hoje, é procurada por colecionadores de carros antigos, que veem o endereço pela internet e se dirigem à loja comprada ainda na planta. “Outro dia vendi para um rapaz de Curitiba, que veio e levou um banco de Maverick. Sou mundialmente conhecida por conta das peças antigas, pelos 50 anos de história”, conta. Da luta diária, conseguiu comprar dois apartamentos e um carro que nunca pegou na concessionária (mas recuperou o dinheiro). Atualmente, mora sozinha em uma quitinete na Avenida Rio Branco, da qual me mostra fotos de cada parte – “É pequenininha, mas toda projetada. É alta gala”, orgulha-se. “Sou solteiríssima, à moda antiga, convicta, juramentada e virgem. Nem por isso deixo de ter coração, mas acima dele está a cabeça. Sou aposentada desde 1996. Não recebo o que paguei, mas vivo bem. Hoje atuo mais na filantropia. Todos os dias venho aqui, que é o meu ateliê, e faço roupinhas e sapatinhos de bebê para mães carentes, além de conservar a loja”, diz. Uma hora de entrevista, e me despeço de Marlene. Ao levantar, arrumo o pequeno tapete aos meus pés. Está tudo impecável. Como sempre.