Transgressores da língua
A gramática que rege professor e aluno não é capaz de dobrar a língua do povo. Ao invés de pedir dê-me um cigarro, o bom negro e o bom branco do poema Prenominais, de Oswald de Andrade, preferem deixar de lado a cerimônia para dizer me dá um cigarro. Os versos do escritor paulistano imortalizaram a realidade de uma língua em que se escreve de modo bem diferente do que se fala. Uma exposição no Museu da Língua Portuguesa homenageia Oswald e o elege como o culpado de tudo, em referência ao caminho que esse e outros nomes do modernismo abriram no nosso idioma. A mostra em São Paulo coincide com o centenário de publicação de uma das obras mais importantes de outro transgressor da língua, o carioca Lima Barreto. Há um século, o autor publicava Triste fim de Policarpo Quaresma, livro que incorporou o coloquialismo das ruas e traçou uma crítica feroz aos pensadores da nação brasileira.
Oswald desmitificou o ‘lado doutor’ da cultura brasileira e da língua portuguesa falada no Brasil. Combateu o fetiche da erudição, os vícios bacharelescos e as ‘indigestões da sabedoria’ presentes na tradição intelectual brasileira desde o Império e, ainda hoje, vigentes em certos nichos de ditas inteligências universitárias e literárias, comenta o professor do curso de Letras da UFJF André Monteiro, apontando Oswald como um descolonizador da língua e da vida. A grande culpa de Oswald foi não ter confundido sisudez com profundidade e inteligência. Muitos, até hoje, ainda não o perdoaram por isso, diz, em referência ao título da exposição no Museu da Língua Portuguesa: Oswald de Andrade – O culpado de tudo.
O contato de Monteiro com o autor do Manifesto antropófago surgiu ainda na adolescência, através da admiração do professor por nomes da contracultura no Brasil, como os cineastas Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, o diretor de teatro Zé Celso, o artista plástico Hélio Oiticica e os tropicalistas Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto e José Carlos Capinam. Em tudo isso tinha o dedo forte de Oswald. Aí fui direto à fonte. Desde então, carrego Oswald de Andrade no meu corpo como um escapulário profano, relata, fazendo referência ao poema Escapulário, do livro Pau-Brasil (No Pão de Açúcar/ De cada dia/ Dai-nos Senhor/ A poesia/ de cada dia).
Apesar da figura emblemática de Oswald, que se confundia com seu próprio modo irreverente de viver, o posto de renovador da língua deve ser compartilhado com os outros nomes do modernismo brasileiro. Isso estava no programa de quase todos os modernistas. Cada um, de uma maneira muito singular, contribuiu para a desmistificação da ‘moléstia de Nabuco’, como diria Mário de Andrade em uma carta a Drummond, explica André Monteiro, referindo-se à desconstrução do complexo de inferioridade, lingüística e cultural, do Brasil em relação à Europa.
A coordenadora do curso de Letras do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES-JF), Luciana Salles, cita o capítulo Carta pras Icamiabas, de Macunaíma, em que o anti-herói criado por Mário de Andrade fica espantado ao descobriu que falamos em uma uma língua e escrevemos em outra. O autor de Paulicéia desvairada também foi uma das principais vozes a se elevar contra os estrangeirismos da língua. Nesse sentido, era necessário desenvolver uma língua brasileira, uma vez que o próprio português era considerado uma língua emprestada.
André Monteiro ressalta que Mário de Andrade chegou a desenvolver essa idéia em ensaios e textos literários. A partir disso, concebeu sua Gramatiquinha da língua brasileira, com modo de grafar mais próximo da oralidade. Oswald, por sua vez, rejeitava a pronúncia estrangeirada de seu nome, preferindo ser chamado de Osválde.
À margem dos círculos intelectuais
Luciana Salles destaca Lima Barreto como pioneiro na utilização da linguagem coloquial na literatura. Mulato, pobre e alcoólatra, o autor era por si só uma ofensa aos ciclos intelectuais da época, formados, em geral, por gente branca e bem-nascida. O autor de Nova Califórnia morreu, em 1922, sem ver sua obra reconhecida. Ao contrário de Machado de Assis, que conseguiu ter prestígio, Lima Barreto sempre ficou à margem da sociedade, diz.
A percepção aguda de Lima dos absurdos existentes no país resultaram em críticas ferozes em contos como República dos Bruzundangas ou no romance Triste fim de Policarpo Quaresma, publicado em folhetim, no Jornal do Commercio, entre agosto e outubro de 1911. Luciana Salles destaca essas obras como pioneiras na incorporação de coloquialismos. Até então, os escritores acabavam cedendo à tentação de colocar uma linguagem culta na boca de um personagem popular, comenta.
Para os leitores contemporâneos, a literatura de Barreto pode não parecer tão popular assim. Na época, entretanto, tal tratamento fez com que muitos críticos torcessem o nariz para os textos do carioca. Muitos autores o colocaram como um nome menor por usar linguagem coloquial, explicita Luciana.
André Monteiro inclui o nome de José de Alencar entre os pioneiros na transgressão da língua. Embora extremamente conservador do ponto de vista ideológico, o escritor tinha, já no século XIX, um projeto de tupinização do português. Basta ouvir a música de Iracema para compreendermos como a língua portuguesa ganha, ali, uma plasticidade sonora até então impensável fora dos trópicos, diz.