Processo de tombamento no Poço Rico completa dois anos
Processo de tombamento de conjunto de casas no Poço Rico completa dois anos desde a notificação dos moradores, mas ainda não tem previsão de término. Comunidade aguarda enquanto assiste inauguração da alça do viaduto e finalização do prédio vizinho, e continua enfrentando a insegurança na região
Em dois anos, a paisagem vista da janela da casa do aposentado Dante Guedes, de 60 anos, mudou radicalmente. Das janelas, da porta de entrada, da garagem ou dos jardins de sua residência, no número 205 da Rua Dr. Vilaça, avista-se um agigantado prédio com seus 11 pavimentos. Em dois anos, o fluxo diante da casa da médica aposentada Carmem Lúcia Pazzi, 62, alterou-se bastante. Há alguns meses, os engarrafamentos eram constantes e o barulho de obra era permanente, na esquina das ruas da Bahia e Antônio Dias, onde ela vive. A obra da alça do viaduto logo ao lado impactou a rotina na região nos últimos anos e, agora, após a inauguração do novo acesso, parece ter reduzido o fluxo no horizonte da moradora. Em dois anos, o número de placas de “Vende-se” na fachada da casa do aposentado Afonso Lovisi Travassos, 65, no número 74 da Dr. Vilaça também diminuiu. A casa insiste em não vender. Como também insiste a aflição de Dante, Afonso, Carmem e mais de uma centena de vizinhos, que aguardam o fim do processo de tombamento do Conjunto Paisagístico Urbano do Bairro Poço Rico, cuja notificação eles receberam em outubro de 2017. A apreensão e a indignação, essas não mudaram nada em dois anos.
“Estamos reféns. Não posso ir à Justiça, porque se o juiz mandar parar o processo piora para mim, porque ele levará mais tempo até chegar ao fim. Só posso reclamar na Justiça após o processo terminar. Queremos ir para a Justiça, mas ela é tão morosa que temos medo de ser pior”, revolta-se o analista de sistemas Ricardo Capra, 48, morador do número 23 na Dr. Vilaça e um dos líderes do grupo que se formou para, coletivamente, redigir o pedido de impugnação. Se em 2017 eram 140 proprietários afetados, passados dois anos, o número aumentou. Há um mês, a mãe de Carmem Lúcia faleceu, e o imóvel hoje, pertence a ela e à irmã. No caso de Dante, ocorreu o mesmo, mas com um número bem maior de herdeiros. Seu pai era o proprietário e também faleceu, deixando o imóvel para a esposa e cinco filhos. Nem o grupo de moradores, que se mantém com a mesma formação desde o início, nem a Funalfa, responsável por dar sequência ao processo, dispõem do número exato de proprietários atualmente. Ao término do processo, caso seja aprovado o tombamento, uma nova notificação deve ser feita, contemplado todos os atuais proprietários.
“Estamos reféns. Não posso ir à Justiça, porque se o juiz mandar parar o processo piora para mim, porque ele levará mais tempo até chegar ao fim”, Ricardo Capra, morador
De acordo com a historiadora da Divisão de Patrimônio Cultural da Funalfa Carine Muguet, que coordena a pesquisa do processo iniciado em 2015 – por questões burocráticas a notificação só aconteceu dois anos mais tarde -, o dossiê está em fase de redação ainda. Visitas ao bairro serão feitas posteriormente, sem a necessidade de adentrar os imóveis, gesto que os moradores já apontam serem contrários. “O processo do Poço Rico é muito complexo, porque é um conjunto. Nunca trabalhamos com uma pesquisa tão robusta desse nível. São várias edificações, concentradas num mesmo bairro”, avalia Carine, apontando ser esse um dos 60 processos abertos no setor, que tem dois historiadores, três estagiários em História e duas arquitetas, com quatro estagiários. “Existem processos mais antigos que esse, mas ele está sendo instruído agora porque houve um pedido de prioridade por conta de idade (de um dos proprietários), baseado em lei federal”, explica ela, para logo descrever as ações de uma divisão que teve, recentemente, seu espaço físico ampliado, ainda que para a mesma equipe. “A gente atende pesquisadores o ano todo, vamos a campo, visitando obras, fazendo vistorias técnicas, emitindo laudos para a isenção de IPTU. Fazemos muitos relatórios. É uma equipe muito enxuta para um trabalho muito robusto. Temos 190 bens tombados. É um valor muito elevado, mas isso demonstra, também, um amadurecimento da nossa política de preservação e o processo de reconhecimento do que é nossa memória.”
“A gente atende pesquisadores o ano todo, vamos a campo, visitando obras, fazendo vistorias técnicas, emitindo laudos para a isenção de IPTU. Fazemos muitos relatórios. É uma equipe muito enxuta para um trabalho muito robusto. Temos 190 bens tombados”
,Carine Muguet, historiadora da Divisão de Patrimônio Cultural da Funalfa
Narrativas do passado versus dilemas do presente
Para a produção do dossiê acerca do processo de tombamento no Poço Rico, Carine Muguet consultou os acervo do Arquivo Histórico da Prefeitura, do Arquivo Histórico da UFJF e da Biblioteca Municipal, investigando as narrativas sobre as pessoas, as casas e o bairro. “Porque um conjunto paisagístico faz diferença nesse bairro? De que forma essas residências funcionam em conjunto? Foi assim que as equipes de história e arquitetura começaram a trabalhar em conjunto, primeiro conceitualmente buscando entender o que é um conjunto paisagístico e de que forma ele poderia ser aplicado na cidade”, observa a historiadora, que ao longo de sua pesquisa deparou-se com um endereço tratado de maneira bastante diferente da de hoje. “O Cemitério Municipal é o elemento mais antigo do Bairro Poço Rico. Como entender que um bairro tão próximo do centro, ao mesmo tempo, tem um cemitério que na época foi construído numa área que não era urbana e era entendida como uma região muito afastada da cidade? Tentamos entender essas transformações”, conta.
A Estrada União Indústria e o Rio Paraibuna, que teve seu curso alterado no lugar, passam por ali e, na bibliografia, os pesquisadores compreenderam que tanto a Companhia Mineira de Eletricidade quanto a Companhia Industrial Pantaleone Arcuri estão, com suas sedes na Rua Espírito Santo, no que era entendido no passado como a porta de entrada de Juiz de Fora. Ainda, no século passado, parte do bairro era denominado Pantaleone Arcuri, um dos pilares, junto do cemitério, da urbanização da região. “Não conseguimos comprovar que todas elas eram casas de operários. Nem sei se a gente vai conseguir isso. Não é nosso objetivo. Nosso objetivo é ler de maneira isenta todos os documentos, buscando comprovações históricas, cruzando fontes”, indica Carine, diante de três pastas, uma com 310 páginas, outra com 342 e, mais outra, com 183.
“Não conseguimos comprovar que todas elas eram casas de operários. Nem sei se a gente vai conseguir isso. Não é nosso objetivo. Nosso objetivo é ler de maneira isenta todos os documentos, buscando comprovações históricas, cruzando fontes”, Carine Muguet, historiadora da Divisão de Patrimônio Cultural da Funalfa
Se o histórico do Poço Rico revela um passado não-urbano, o presente é repleto de elementos próprios dos dramas urbanos. O morador Dante Guedes relata que recentes mudanças na rede elétrica, feitas para a provimento do novo prédio com seus cerca de 80 apartamentos, fizeram com que a iluminação da rua reduzisse ainda mais. “Já era escuro, e agora está pior. E está perigoso, mesmo durante o dia”, avalia Dante, dizendo temer, também, o impacto na rede de esgoto, que já aponta problemas na área. Carmem Lúcia aponta para o muro, única alteração no imóvel onde mora há mais de 40 anos e que revela a insegurança no bairro. Ricardo Capra critica a coleta de lixo, cujo veículo não passa em sua rua, mas na paralela Rua da Bahia.
O temor e o potencial da verticalização
“Esse tombamento deve ter fins comerciais, é para depreciar as casas no Poço Rico e, depois, vem alguém comprar por um preço baixo para fazer prédios. O Poço Rico para o ramo da construção civil é a próxima vítima. Alguém tem algum interesse financeiro por trás disso. Só me resta acreditar que essa é uma tentativa de desvalorizar o bairro, porque não há nada beneficiando essa região, nenhuma ação da Prefeitura. Não queremos privilégios, mas queremos que haja coerência”, sugere o morador Ricardo Capra, para logo questionar outras contradições: “A Prefeitura quer preservar um lado, mas a 50 metros quer modernidade? Como que bate estaca a 50 metros de uma casa tombada? Como permitem um prédio desses?”. Para a historiadora Carine Muguet, a preservação atuaria justamente para reverter essa realidade. “O bairro está muito passível da verticalização e da perda de suas características originais”, observa.
“A Prefeitura quer preservar um lado, mas a 50 metros quer modernidade?”, Ricardo Capra, morador
A mesma verticalização vista como perigo e como sombra também é contemplada por um mecanismo cuja lei complementar foi decretada há dois anos e até hoje não foi colocada em prática. Tratada por especialistas de todo o país como uma das melhores ferramentas de compensação do tombamento, a lei que dispõe sobre a transferência do direito de construir data de 1998 em Juiz de Fora, mas foi aprimorada há duas décadas. Segundo o historiador da Divisão de Patrimônio Cultural da Funalfa Fabrício Fernandes, encontra-se em fase final de regulamentação, após complexa pesquisa para aplicabilidade da lei na cidade e diálogo entre as secretarias da Prefeitura, discutindo questões como o próprio adensamento da cidade. “Só faltam os termos jurídicos para lançar”, pontua o profissional.
O mecanismo prevê a monetização da área virtual que um imóvel poderia construir e sua transferência para outra edificação que apresente limitação de construção. Numa cidade que, recorrentemente, aprova leis para regularização de imóveis, a lei precisará enfrentar o legislativo. “O potencial, para dar certo, tem que ser o mecanismo para a regularização. Se tiver sempre uma nova ferramenta, ele pode cair em desuso”, reconhece Fabrício. “Esse descompasso gerou uma discussão muito grande. Não tem nada definido no sentido de que a Câmara Municipal tenha ciência de que não pode criar outras leis. O potencial precisa funcionar para que todos entendam que esse é um caminho que funciona.
“O potencial, para dar certo, tem que ser o mecanismo para a regularização. Se tiver sempre uma nova ferramenta, ele pode cair em desuso”, Fabrício Fernandes, historiador da Divisão de Patrimônio Cultural da Funalfa
Em nota, a assessoria de comunicação da Prefeitura afirma que o Poço Rico recebe manutenção constante, com serviço de tapa-buracos, recapeamento asfáltico, poda de árvores, varrição semanal em ruas de maior movimento, capina e retirada de descartes irregulares. “No início da Rua Cel. Delfino Nonato de Faria, no Bairro Poço Rico, existe um ponto de bota-fora irregular. Somente neste ano de 2019, foram retirados cerca de 180 toneladas de lixo e entulho. O Demlurb já limpou 15 vezes o local somente em 2019”, ressalta a nota, que também afirma existir uma abordagem social de moradores em situação de rua, orientando e encaminhado aos serviços municipais. “Uma nova ação de abordagem social está agenda para a próxima terça-feira, 8, às 14:30, na Rua da Bahia.”
Atualização: Esta reportagem foi atualizada no dia 8 de outubro, às 14h25, com a correção do nome de Carine Muguet, historiadora da Divisão de Patrimônio Cultural da Funalfa.