Rede pública de Juiz de Fora tem sete vezes mais negros que rede privada
Levantamento do JF em Dados baseado no Censo da Educação Básica 2020 aponta que, na rede pública, 51% dos alunos são negros (pretos e pardos), enquanto 36% são de brancos; nas escolas particulares, número se inverte em 19% e 65%
A presença de alunos negros nas escolas públicas de Juiz de Fora é quase sete vezes maior do que a quantidade de estudantes pretos e pardos nos colégios particulares da cidade. Na rede pública, o percentual de negros é de 51%, ou 43.839 alunos, em relação ao total de estudantes, enquanto na rede privada, pretos e pardos representam 19%, ou 6.366 estudantes, do total de crianças e adolescentes. Já os alunos brancos são 65% dos estudantes das escolas particulares do município, ou 20.788, e somam 36%, ou 30.803, dos alunos da rede pública.
Os dados são parte de mais um levantamento do JF em Dados baseado no Censo Escolar 2020 e indicam, conforme análise de especialistas na área ouvidos pela Tribuna, uma educação desigual para brancos e negros na cidade e escancaram uma realidade que segrega.
Apesar de o acesso de negros a escolas ter crescido na última década, a garantia de um ensino de qualidade a essa população é desafio – como também apontam os dados – e carece de debates e ações que ultrapassam os limites das instituições de ensino. A discussão do racismo e a efetiva implementação de políticas públicas voltadas para a população negra são duas delas, como analisa Giovana de Carvalho Castro, historiadora e professora da rede municipal em Juiz de Fora, ouvida pela Tribuna.
“Quando a gente fala dessa divisão (de negros e brancos) nas escolas públicas e privadas, a realidade escancarada da segregação está nos dados. Essa segregação tem profundas raízes históricas no próprio processo de constituição da sociedade brasileira e do modelo do Estado brasileiro, constituído no pós-abolição”, avalia. Giovana observe que as escolas com maior número de negros e com infraestrutura mais precarizada estão, via de regra, localizadas em regiões periféricas, que geralmente carecem de políticas públicas sistemáticas.
Além da composição racial dos alunos, o estudo elaborado pelo JF em Dados também evidencia o abismo existente entre o desempenho dos alunos da rede pública e privada em testes como o do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), sendo que os da rede privada têm as maiores médias nas provas de linguagem e de matemática que os demais. Quando o recorte é feito por percentual de negros e pardos nas instituições, os dados são ainda mais impactantes. Entre as escolas particulares, as notas médias em matemática, por exemplo, são sempre maiores que as das públicas, tendo elas a maior quantidade de alunos brancos. Já as escolas públicas têm as notas médias mais baixas e a maior porcentagem de pretos e pardos.
O desempenho dos alunos também não é desassociado da infraestrutura oferecida pelas unidades de ensino. O levantamento também demonstra que há acesso desigual à educação dentro das próprias escolas da rede pública em Juiz de Fora. Naquelas em que há maior presença de alunos negros, embora haja maior quantidade de salas de leituras, há menos bibliotecas e laboratórios de ciência para cada dez mil alunos, por exemplo.
“As escolas com maior percentual de negros são as que têm acesso aos laboratórios mais precários. Ou seja, falta fé no desemprenho da criança negra, portanto não se investe nessa criança. E, depois, em um discurso cruel e distorcido, se diz que seu fracasso é sua própria culpa, quando, na verdade, em nenhum momento houve um diagnóstico e a construção de soluções para que o desempenho da criança negra seja efetivo. Falta investimento em políticas públicas e falta reconhecimento de que o racismo é o fator atravessador e determinante do destino dessas crianças”, analisa Giovana.
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JF em Dados
Os dados abordados pela matéria são fruto do trabalho de levantamento do projeto JF em Dados, cuja parceria com a Tribuna acontece desde junho. As informações foram tratadas a partir da base de dados do Censo Escolar e também do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), sobre o Enem. Quanto aos dados do Censo Escolar, embora haja informações de cerca de 360 instituições da cidade, ainda há carência de divulgação de números mais amplos.
De acordo com Matheus Valentim, um dos idealizadores do JF em Dados junto com Marcello Filgueiras, não existem dados no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) para todos as séries das escolas da rede privada da cidade, por exemplo. Apesar disso, os organizadores destacam o cenário impactante que o recorte dos dados disponíveis evidenciam. A análise considerou as escolas do ensino básico, fundamental e médio da cidade, das redes municipal, estadual e federal.
Disparidade econômica e menor possibilidade de ascensão
Os dados apontam que a educação para brancos e negros é desigual em Juiz de Fora. Os alunos brancos concentram os melhores indicadores e é a população que mais vai à escola e tem acesso a uma educação de qualidade. São também os que se saem melhor nas avaliações nacionais. Além disso, conforme lembra a mestra em Educação Carla Cristina Carvalho Pereira, a evasão escolar é outro fator que demonstra “a gritante desigualdade racial no país”.
Em pesquisa divulgada em 2015 pelo IBGE, na educação básica, dos 50 milhões de pessoas entre 14 e 29 anos, 10,1 milhões (20,2%) deixaram a escola, dos quais 71,7% eram pretos e pardos. “Com menor percentual de escolarização e menos acesso ao conhecimento de qualidade, os alunos pretos e pardos têm menor inserção no ensino superior e menos ainda nos cursos considerados ‘nobres’ e, consequentemente, menos possibilidade de ascensão social’, cita a professora, que integra projeto sobre Relações Étnico-Raciais na Escola, desde 2018.
Para Carla, esse cenário tem reflexos em todas as esferas da vida de uma pessoa negra, e a “imensa disparidade de renda entre brancos e negros é um dos aspectos a serem apontados, conforme pesquisa divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2021, demonstrando que brancos recebem, em média, o dobro do que os negros no país. Com menor possibilidade de ascensão social e sem acesso à renda, a ocupação de espaços historicamente negados à população negra segue restrita.
Giovana Castro também cita a falta de oportunidades que a população negra enfrenta no acesso ao mercado formal com melhores condições de remuneração. “Além da questão econômica, que é um legado do processo da escravização, há um processo contemporâneo de manutenção da população negra distante de cargos de melhor remuneração, porque os processo seletivos são sempre deletérios a essa população, mesmo que a pessoa negra tenha qualificação, ela nunca é a primeira opção ou sequer são cogitadas como opção de contratação”.
Raízes históricas
Para a historiadora, portanto, o fracasso escolar da população negra e a desigualdade de acesso à educação tem raízes históricas e “é fruto do racismo que atravessa as instituições e a sociedade brasileira”. “Esse fracasso escolar não é algo de ordem biológica nem tão pouco endógena, não é que as crianças negras são menos preparadas para a escola. É que o racismo é uma fator de impacto emocional no resultado dessas crianças. Portanto, o fracasso escolar atravessado pelas políticas racistas e pelo modelo de educação e convívio cotidiano dessas crianças na escola, acaba culminado em uma enorme defasagem e distorção entre a idade desse alunos e a série escolar que estão. Se você analisar os alunos nessas condições, a maioria é de negros.”
Os dados do Censo Escolar, embora sejam dados impactantes, não são surpreendentes, uma vez que não há políticas de promoção de ações afirmativas, analisa Giovana. “A gente escuta muito frequentemente, não só na escola, a ideia, uma mitologia, de que somos todos iguais e que, portanto, as políticas públicas devem ser oferecidas da mesma forma para pessoas de condições raciais e sociais diferentes. Isso acaba agravando uma situação que já é crítica, não só no pós-abolição, mas também em toda a estrutura da construção da escola pública durante o século XX. (…) Os dados mostram a berrante diferença no investimento que é feito em crianças negras na educação pública e os resultados estão aí, refletindo essa ausência de políticas públicas específicas para determinados grupos raciais.”
Investimento em políticas pedagógicas de inclusão
Em termos de políticas pedagógicas de inclusão, a professora mestra Jussara Alves da Silva afirma ser necessário haver investimento na escola pública, com garantia de acesso, permanência e sucesso dos estudantes negros à educação gratuita e de qualidade, além da valorização da formação docente e da profissão docente.
“É preciso garantir que todos os equipamentos públicos estejam voltados à desconstrução dos estereótipos negativos relacionados à população negra. As políticas públicas educacionais precisam levar em conta a existência do racismo, combatê-lo efetivamente, oportunizando aos nossos estudantes negros a igualdade de oportunidade e equidade em relação às diversas lacunas sociais existentes em nossa sociedade que é desigual e excludente”, afirma Jussara, que é doutoranda em educação, especialista em História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, Educação para as Relações Étnico-Raciais, trabalha com relações étnico-raciais e educação, além de atuar na formação de professores e supervisão pedagógica.
Para ela, a escola pública carece, além de investimentos financeiros, de olhares e atitudes responsáveis por parte do poder público. É preciso fiscalizar a efetivação das políticas já existentes, garantir melhorias tanto na estrutura física das escolas públicas quanto no fator humano, como por exemplo em relação à formação continuada, valorização profissional, (re)educação das relações étnico-raciais e sensibilização para a percepção e reconhecimento das subjetividades dos estudantes negros”.
Implementação efetiva do ensino da história afro-brasileira
A Lei 10.639, de 2003, estabelece a obrigatoriedade do ensino da história africana e cultura afro-brasileira em todos os níveis e redes de ensino, garantindo uma ressignificação e valorização cultural das matrizes africanas que formam a diversidade cultural do país. Entretanto, conforme as especialistas ouvidas pela Tribuna, não há efetividade em sua implementação no país. Na avaliação delas, é primordial que as instituições de ensino públicas e privadas, em todos os seus níveis, implementem em seus currículos as diretrizes da lei para que pautas como o racismo, a desigualdade e a segregação, evidenciadas pelos dados, possam ser reconhecidas institucionalmente e discutidas.
“Discutir racismo não é uma especificidade dos locais onde há pessoas negras. Discutir racismo é discutir a natureza e um projeto de sociedade que nós estamos colocando em pauta. Que tipo de sociedade nós queremos e como essa sociedade vai ser estruturada se uma grande parte desses cidadãos estão fora das condições de imersão efetiva nos seus direitos constitucionais? Discutir a memória da presença negra no Brasil e como ela altera as estruturas de pessoas negras e pessoas brancas também implica, necessariamente, em reconhecer o despreparo que crianças brancas têm e que adultos brancos têm de lidar com pessoas negras em condições de igualdade”, defende Giovana Castro.
“Pensar a educação como um caminho é um caminho”. Para a historiadora, a educação é um espaço de instituições que têm a responsabilidade de promover ações e uma educação antirracista, que contemple a diversidade racial do alunos que frequentam as redes escolares no país. Ela cita a importância de um projeto de escola que permita a capacitação de professores, a fiscalização da alteração dos currículos, a construção de narrativas de referência e de representatividade para as crianças negras.
“Isso implica em a gente discutir não só o que tá sendo pensado em sala de aula nas séries iniciais, mas também a formação dos professores e da própria estruturação do ensino acadêmico. (…) É preciso construir nas nossas crianças, nos nossos adolescentes e nos nossos adultos o reconhecimento da sua condição fenotípica e melhorar nas nossas crianças um reconhecimento da sua identidade étnica a parte de uma postura positiva. E nesse ponto a gente tem muito o que caminhar na escola”.
Isso, inclusive, pode alterar o percentual de alunos “não declarados”, que está acima de 10% do total de estudantes tanto nas escolas públicas quanto privadas. “Essa resistência na declaração da cor, muitas vezes, está vinculada à uma situação brumosa sobre qual é a cor efetivamente da pele, o que significa declarar ter determinada cor de pele. Durante muito tempo, silenciou-se sobre a cor no Brasil”, analisa. Além de políticas educacionais, políticas públicas para a população negra em outras esferas também precisam ser pensadas e implementadas. Entre elas, a defesa das políticas de ações afirmativas em diversas esferas e políticas voltadas para a promoção efetiva de igualdade racial, cita.
Segregação na educação é reflexo de uma cidade desigual
Em 2018, segundo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em parceria com o Fundação João Pinheiro e o Ipea, Juiz de Fora foi classificada como a terceira cidade mais desigual entre negros e brancos no Brasil. E a educação, obviamente, sofre os reflexos da desigualdade racial que existe no município.
“Precisamos que ações sejam efetivamente implantadas e que a gente tenha um conjunto de políticas públicas de planejamento para que posamos, no futuro, reduzir ou até mesmo erradicar a desigualdade racial que impera na cidade.” Giovana cita a importância do Conselho Municipal para a Valorização de Promoção da Igualdade Racial em Juiz de Fora. Na avaliação dela, o órgão reúne as condições para fornecer uma estrutura de um conjunto de ações que caminhem em consonância com o Estatuto da Igualdade Racial, a Lei 12.288 de 2010.
O estatuto, inclusive, é destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos e o combate à discriminação, conforme Giovana, é um conjunto de leis bastante sólido, inclusive para que se consiga criar planos efetivos a nível municipal, que permitam a superação da desigualdade racial na cidade. Para ela, adotar e implementar medidas para atenuar segregação racial é algo “relativamente simples”, quando se leva em conta as diretrizes da Lei 12.288/2010.
“É seguir o estatuto da desigualdade racial em todas as questões que ele coloca. Ele é resultado de um longo estudo promovido por pesquisadores, intelectuais negros, agentes de políticas públicas do Brasil inteiro. Estamos com um Conselho Municipal de Igualdade Racial ativo, à disposição de estabelecer um diálogo com o Poder Público, existe uma legislação que ampara isso. Então, precisa de vontade política. Precisa que essas ações sejam efetivamente implantadas”.