‘Com medo, nada se cria’, diz Ney Matogrosso em entrevista à Tribuna
Aos 78 anos, artista volta a Juiz de Fora com a turnê “Bloco na rua” e fala à Tribuna sobre carreira, envelhecimento e motivação para estar nos palcos
Ainda me lembro do abrir e fechar das portas dos elevadores do Hotel Serrano, em cujo saguão, há cinco anos, eu aguardava para entrevistar Ney Matogrosso. Na época, o cantor estreava a turnê “Atento aos sinais” em Juiz de Fora, no Cine- Theatro Central. Abre. Fecha. Ninguém. Abre. Fecha. Até que… Ney. Agora, em 2019, o artista retorna ao Cine-Theatro Central, depois de estrear no Rio e ter passado por São Paulo e diversas outras capitais com a turnê “Bloco na rua”. “Gosto de estrear em Juiz de Fora, porque consigo sempre uns cinco dias no teatro para finalizar o espetáculo, o que teatro algum no Rio me dá. Mas, desta vez, não estava disponível, acabei só conseguindo dois dias aqui no Rio, o que me fez estrear sem saber ainda do que o show se tratava, me deixando um tanto inseguro”, diz ele, sempre perfeccionista com os shows que elabora, criados por ele em cada detalhe, cada minúcia. “O que eu quero como artista é me manter atraente aos olhos da plateia, que meus trabalhos sejam atraentes. E isso em todos os aspectos do show: através da luz, do figurino, do repertório, dos gestos, de tudo.”
Ao contrário do que fez na turnê passada, em que apresentou um repertório de composições inéditas, Ney passeia, em “Bloco na rua”, majoritariamente por novos arranjos de obras consagradas de contemporâneos seus, muitos deles próximos a Ney na arte e na vida. A setlist inclui “Como dois e dois” (Caetano Veloso), “Tua cantiga” (Chico Buarque), “Coração civil” (Milton Nascimento e Fernando Brant), “A maçã” (Raul Seixas), “Jardim da Babilônia” (Rita Lee), “Mais feliz” (Cazuza e Bebel Gilberto) e “Pavão mysterioso” (Ednardo), celebradíssima em sua voz, por sinal. “Tinha acabado de fazer um show com seis músicas inéditas, que é muito. Eu não queria nenhuma inédita, embora tenha uma (“Inominável”, do compositor paulista Dan Nakagawa). Aí me despreocupei, fui escolhendo cantar só o que eu gostasse de cantar, sabe?”, diz ele. O repertório, inclui “Mulher barriguda”, e “Sangue latino”, de seus tempos de Secos & Molhados, que arrebata os fãs nostálgicos. “Com ‘Sangue latino’ acontece algo engraçado. Agora eu tendo vivido mais e tanto tempo, parece que é algo que fala de mim, da minha vida, e que talvez as pessoas até já fizessem uma associação antes, mas eu só percebo claramente agora.”
Emprestando o nome à turnê, “Eu quero é botar meu bloco na rua”, de Sérgio Sampaio, obviamente integra o roteiro do show em seu tom poeticamente crítico, certeiro para a atualidade, sinal da sintonia de Ney com os tempos. “O título não é uma provocação, ele me indica uma sensação de algo em movimento. Eu nem sabia que ‘Eu quero botar meu bloco na rua’ é uma música para a ditadura, não sabia mesmo. Depois que o show ficou pronto que eu vi as pessoas falando isso. Você sabe que eu não tenho envolvimento político partidário porque isso não me interessa. Mas eu sempre tive um lado meu muito crítico, então isso está presente neste trabalho, como esteve em ‘Atento aos sinais’ e provavelmente estará em todos que eu fizer. Eu sempre botei o bloco na rua.”
Meu encontro com Ney, desta vez, foi por telefone, antes de sua passagem por Juiz de Fora, de onde seguirá para tocar pela primeira vez em Londres e depois Porto e Lisboa. Na entrevista, atentíssimo aos sinais, ele falou sobre o novo espetáculo, carreira, envelhecimento e sobre não ter medo.
Tribuna – Na estreia de “Atento aos Sinais”, você me falou sobre como nasceu transgressor e como isso estava em sua essência. Agora, em “Bloco na Rua”, de que forma esse característica sua se manifesta?
Ney Matogrosso – É muito louco o que eu vou te dizer agora. Parece que eu fiz um show para esse determinado momento da história do Brasil. Mas na verdade fiz esse roteiro dois anos antes. Quando estava no terceiro ano de “Atento aos sinais”, comecei a fazer roteiros para um próximo show, e este que se tornou a turnê foi o décimo que eu fiz: fazia um, olhava, e dizia “Não, tá faltando algo”. Fui fazendo e cheguei a esse, mas isso muito antes do governo atual, antes de eleição, antes de tudo. Mas parece que eu fiz para agora. Acho que talvez por uma percepção latente da realidade, embora não houvesse Bolsonaro no panorama na época em que criei o show.
Você é um artista de muitas linguagens, m breve vai poder ser visto mais uma vez nas telas, na Netflix em “3%”, e no filme “Caminhos magnéticos”, de Edgar Pêra. O que significa para você pode se expressar de tantas formas artisticamente?
Acho que por eu ser cantor, isso não deve me restringir, não sou obrigado a ser só isso. Então eu busco todas as expressões que me interessam. Gosto de desenhar também, volta e meia eu faço uns desenhos e ponho no Instagram, e as pessoas gostam e dizem ‘Ah, faz uma exposição!”. Mas eu não quero fazer exposição, quero desenhar esporadicamente, fazer um desenho quando me der vontade. Tudo que me interessar nas artes eu quero poder me envolver, né?
Isso se reflete também no seu envolvimento nos shows, em cada aspecto deles. Neste tem algum momento em especial que seja seu favorito?
Ah sim, eu me envolvo em cada momento do show, de todos os meus shows. Eu selecionei tudo, então tudo que está ali me toca de alguma maneira, não tenho um momento que eu possa destacar. Mas em alguns eu observo mais reações da plateia. Aliás, no comecinho eu percebia melhor que havia alguns pontos em que as reações eram maiores, mas hoje vejo isso como um todo, já de cara na primeira música, e segue na segunda, na quinta, na sétima, na última… Há uma reação muito forte ao show todo, uma euforia muito grande. Vejo a plateia borbulhando de euforia mesmo. E claro que isso me acende feito um louco né? (risos). Quando vejo isso acontecendo, aí é que fico cego, me entrego mesmo. É isso que me motiva a continuar na arte, esse contato com a plateia.
Você, Caetano, Gil, Gal Costa, Chico Buarque, Milton e tantos outros continuam na ativa, gravando, fazendo shows. A que você atribui o fato de vocês atravessarem gerações se mantendo como os principais nomes da MPB?
Olha, no meu caso, o que eu penso (e pode nem ser isso, mas é o que eu acho) é que eu venho sempre com trabalhos diferentes um do outro. Então as pessoas já entenderam isso e talvez exista uma curiosidade pelo meu próximo passo. É muito estimulante poder se lançar em coisas diferentes, eu nunca fiz um show de sucessos e tenho sucessos suficientes para isso. Nunca fiz. Poderia, né? Não sei se em algum momento virei a fazer, mas até agora não me interessei por isso. Mas sempre eu tenho uma coisa ou outra do meu repertório que está presente, esparsamente, em cada um dos meus shows.
Qual papel você acredita que a arte tem num contexto como o que vivemos atualmente, de acirramento do conservadorismo e até de censura?
O papel da arte é ignorar isso e tocar em frente. Eu ignoro, como sempre ignorei, todos os governos. Nunca fiz meu trabalho para governo, pensando em governo. Sempre foi pensando no público, nos meus contemporâneos. Desde o começo nunca me preocupei com qualquer coisa além de quem está me vendo.
E como você vê sua trajetória e seu impacto como artista depois de tantos anos?
São 46 anos de carreira. Eu não sei te responder, porque não sei o que significa ter 78 anos, por exemplo. Porque não me sinto velho, sabe? Como é que tem que ser? Eu não sei. Eu continuo a mesma pessoa dentro de mim. Claro que eu observo as transformações que estão ocorrendo comigo, com meu corpo, com meu lado de fora. Mas dentro na minha cabeça, eu sou o mesmo de sempre. E acho ótimo isso. Claro que tenho consciência de que vai haver um momento em que o tempo vai ser um obstáculo, mas ainda não é. E inevitavelmente ele será. Então, eu tento conviver com essa possibilidade com tranquilidade, como tento conviver com tranquilidade com a ideia da morte. Claro, tudo isso passa pela minha cabeça. Eu não sou uma pessoa que se esconde dela e que foge dela. Eu quero estar consciente, sem medo e fazer uma passagem tranquila. Só. Sabe? Tem gente que você fala ‘a morte’ e te diz “Deus me livre, não me fale disso”. Eu não. Eu falo disso, reconheço isso.
Até porque reconhecer a morte faz a gente ver a vida em perspectiva, né?
Exatamente. Saber que estamos aqui de passagem é o mínimo de consciência que a gente deveria ter. Mas as pessoas não querem. Aí vivem num estado de negação e com medo, porque tudo é medo, né? O desconhecido é medo, o amanhã é medo, tudo é medo. A passagem do tempo é medo. Eu não tenho medo de nada disso, te juro! Não tenho medo de nada disso. Com medo, nada se cria. Com medo, você estaciona.