Adoção: 171 pessoas ou casais estão habilitados em Juiz de Fora
Conselho Nacional de Justiça lançou a Busca Ativa para facilitar a adoção de crianças e adolescentes que não têm o perfil mais desejado

“Ser mãe sempre foi um desejo antigo que, por muito tempo, fingi não sentir. Acreditava que ser uma mulher lésbica e solteira tornaria o processo complicado, e temia também julgamentos, principalmente, dos mais próximos. O tempo passou, e esse desejo ficou lá trancado em alguma gaveta. Após conhecer uma antiga parceira, que, ao contrário de mim, desde muito cedo decidiu que seria mãe e falava com muita naturalidade sobre a maternidade, isso acabou me influenciando, naturalmente. Coragem era o que eu precisava para me tornar o que eu sempre quis: mãe por adoção.” O desejo de Heliana Queiroz, 52 anos, que atua no segmento da moda circular em Juiz de Fora, vai ao encontro da vontade de muitos outros moradores da cidade, onde há 171 habilitados ativos em busca de um filho (a) adotivo (a), segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Na outra ponta, há cinco crianças e um adolescente aptos à adoção em Juiz de Fora. Destes, há um grupo composto de quatro irmãos, sendo três meninas brancas, de 1, 4 e 5 anos, e um menino pardo, 7; um adolescente preto com deficiência física, 14; e um garoto branco, 11, com deficiência intelectual. A novidade é que agora a ligação entre quem deseja formar ou pertencer a uma família pode ser mais fácil, graças à Busca Ativa. A iniciativa foi adotada recentemente pelo CNJ para facilitar a adoção de crianças e adolescentes que não têm o perfil mais desejado pelos cadastrados no SNA. Pessoas e famílias aptas conseguem localizar informações pessoais, fotos e vídeos daqueles que enfrentam dificuldades para serem adotados, seja pela idade, raça, alguma deficiência, enfermidade ou outras questões. De acordo com o CNJ, só neste ano, 307 das 3.409 adoções no país foram pela Busca Ativa, o que representa cerca de 9% de todas as realizadas nesse período.
Muito antes dessa ferramenta, entretanto, Heliana adotou duas crianças consideradas fora dos padrões mais solicitados. “Fui mãe do Erik antes mesmo de entrar para o cadastro. Não éramos casadas no civil e não era tão simples para duas mulheres o processo de adoção na época (2013). Tínhamos urgência em maternar. Erik tinha uma saúde muito delicada e era uma criança com deficiência. Estava num abrigo em São Paulo. O processo de adoção foi bem rápido e possibilitou nosso tão esperado encontro. O estado de saúde dele foi piorando, e ele precisou ser hospitalizado. Não resistiu, infelizmente. Foi dolorido e precisei de um tempo, claro.”
A perda do filho não a fez desistir de continuar maternando, sem restrições. “Passado um ano, me senti pronta novamente e, desta vez, eu queria tudo. Me casei no civil para ser mãe da Júlia, na vida e no papel. Encarei o processo de adoção, a crítica dos ‘mais próximos’ e fui sem medo. Novamente, optamos por não fazer nenhuma escolha em relação à idade, sexo, cor da pele ou qualquer outra coisa. O processo foi rápido, mais uma vez.”
Júlia veio ao mundo em BH. Nasceu com microcefalia, soropositivo e passou por complicações, depois de precisar ser ressuscitada no parto. “Até os 7 meses, ela mal mexia o globo ocular e tinha convulsões, segundo registros e relatos do abrigo. Júlia nasceu para mim quando tinha 1 ano e 1 mês. Mal sentava, parecia um bebê de 7 meses. Os olhos muito vivos acompanhavam tudo. Em três dias, minha filha estava no quarto novo. A casa estava pronta para recebê-la, e eu, ansiosa para começar os tratamentos e terapias. O primeiro neurologista ‘renomado’ que consultamos cogitou que Júlia talvez nunca andasse ou falasse. Não me abalei com a fala. Era nítido para mim que ela tinha um potencial gigante. Víamos no olhar firme dela. Após 4 ou 5 meses de fisioterapia, ela começou a dar os primeiros passos”, conta a mãe.
Aos 2 anos, a pequena negativou o HIV, ou seja, não é mais soropositivo. “Aos 4, ela começou a formar frases e nunca mais parou, contrariando todas as expectativas médicas. Eu sabia!”, comemora Heliana. “Aos 5, ela foi diagnosticada com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), e esse é o nosso maior desafio hoje em dia”, revela.
Crianças com deficiência são rejeitadas por 94,9% dos adotantes
No país, há 5.049 crianças e adolescentes no sistema de adoção, segundo dados do CNJ, divulgados pela Agência Brasil. Do total, 2.322 (46%) correspondem ao gênero feminino e 2.725 (54%) ao masculino. A maioria daqueles que esperam por um lar (69,5%) é negra, sendo 2.631 (52,1%) identificados como pardos e 877 (17,4%) como pretos. Com relação à idade, 2.005 têm até 10 anos, enquanto 3.039, 10 ou mais. No quadro geral, as maiores faixas etárias são entre 14 anos e 16 anos (864), maior de 16 anos (818) e entre 12 anos e 14 anos (767).
Já dentro da Busca Ativa, estão 1.471 crianças e adolescentes. Desses, 688 (46,8%) correspondem ao gênero feminino e 783 (53,2%) ao masculino. Grande parte é de negros (72,1%), sendo 770 identificados como pardos (52,3%) e 291 como pretos (19,8%). São 244 crianças com até 10 anos e 1.226 com 10 anos ou mais. Entre esses estão 387 jovens entre 14 anos e 16 anos, 366 com mais de 16 anos e 302 entre 12 e 14 anos. A presença de irmãos também pode dificultar a adoção. No quadro geral, 3.085 crianças e adolescentes têm pelo menos um irmão, enquanto na Busca Ativa são 894. Nesta também são mais expressivas as crianças que apresentam alguma deficiência, como intelectual (26%), física e intelectual (7,8%) ou apenas física (1,2%). Já no total, 725 (14,4%) dos jovens aptos para adoção no país apresentam deficiência intelectual, 221 (4,4%) física e intelectual e 76 (1,5%) somente física.
Sobre os pretendentes à adoção no país, há 35.631. Casais são a maioria (88,1%), correspondendo a 31.390 mil. Grande parte (68,8%) não determina o gênero da criança que deseja adotar, mas 24,1% têm interesse em ter uma menina, e 7,1%, um menino. Sobre a etnia, 21.016 não têm preferência, já 12.349 desejam adotar uma criança branca. Outras etnias são menos mencionadas: pardas (10.922), amarela (4.046), preta (3.260) e indígena (2.726).
A maioria dos pretendentes tem interesse por uma criança com até 8 anos, sendo que 11.344 buscam crianças entre 2 e 4 anos; 11.055, entre 4 e 6 anos; 6.227, com até 2 anos e 4.884 entre 6 e 8 anos. Sobre a quantidade de filhos, 61,7% aceitam adotar apenas uma criança; 35,9%, duas; e 2,4%, duas ou mais. Já aquelas que apresentam algum tipo de deficiência são rejeitadas por 94,9% dos adotantes.
‘Dissipar a nuvem do preconceito’
Para Heliana Queiroz, contar um pouco da história da Júlia é uma oportunidade de contribuir de alguma forma para “dissipar a nuvem do preconceito”. “E quem sabe, ampliar horizontes para as pessoas que estão interessadas em construir uma família pelas vias da adoção. Minha garantia é que vale muito a pena sentir esse amor incrível crescendo a cada dia.”
A mãe, no entanto, pondera que adotar não é um conto de fadas. “As pessoas romantizam e tendem a acreditar que ser mãe por adoção é um ato sublime de desprendimento ou caridade. Andar na rua com minha filha pode ser bem desagradável às vezes. Ter que explicar minha maternidade no ponto de ônibus, no restaurante, na fila da vacina ou correndo com a criança na chuva é exaustivo, invasivo. Muitas vezes, a criança está ali ouvindo, mas a pessoa não se dá conta. Não percebe que o véu do preconceito não permite enxergar o que está ali na sua frente. Todo amor é construído. Família não é consanguinidade. Ninguém tem o poder de decidir que o filho nasça assim ou assado, e a frase que mais ouço é: ‘Por que você escolheu uma criança com deficiência?’ É uma loucura! Eu só escolhi ter filho, gente! Como qualquer outra mãe.”
Júlia vai fazer 11 anos no dia 2 de dezembro, Dia Nacional do Samba. “Para nossa alegria! Ela é muito falante e adora dançar”, destaca a mãe. Entre as brincadeiras no dia a dia também há muita luta, enfatiza Heliana. “Seguimos firmes fazendo todos os acompanhamentos indicados com neurologista, fonoaudióloga, psicopedagoga e psicóloga, além do apoio de um professor físico duas vezes por semana.” Em meio a tantas atividades, ela descreve a filha como uma “guerreira”. “Não curte matemática e ainda consegue tempo para fazer natação e aulas de capoeira, que ela ama.”
Mesmo com toda luta, Heliana afirma: “Adoro maternar”. “Claro que existem aqueles momentos em que nem sei se vou conseguir chegar ao fim do dia, de tão exausta. Acredito que toda e qualquer maternidade é sempre um desafio. No balanço geral, maternar me fortalece, me faz querer ser melhor para mim, para minha filha e para o mundo.”