Dona Conceição, a mãe natureza de Paula Lima
Ela perdeu os móveis, os cobertores, os vínculos familiares e a rotina, mas não se arrepende de ter acolhido os mais de 140 cães e gatos em sua casa no distrito de Paula Lima
O caminhão que estacionou na porta da casa simples de número 855 na Rua Vicente Gávio, no distrito de Paula Lima, há 12 anos, carregava móveis, roupas e um baú com 63 gatos. Naquele tempo, os bichinhos ganharam todos uma área reservada no imóvel que sequer tinha muros. Pouco a pouco, as pessoas ao redor começaram a identificar a disposição de Maria da Conceição Mendes Gomes em acolher animais carentes. Um dia, chegava um bicho ferido. No outro, abandonavam um filhote. Assim ela alcançou os atuais 69 cães e mais de 70 gatos. Todos vivendo na mesma residência, hoje cercada por muros e repartida em improvisados canis e gatis.
“Fui abraçando a causa e não consegui dar para ninguém. Quantos já morreram, passaram, mas levaram na genética deles a marca de um grande amor?! Crio na mamadeira, passo noites em claro cuidando. Olho dentro daquele olhinho e percebo que lá fora ninguém quer cuidar e descarta os animais, então, acabo acolhendo. Quantos resgates de maus tratos são feitos? Tem muita gente que judia”, comenta ela, que dá lar e nome a todos os cachorros. “Foi muita luta. Jamais imaginei entrar nessa situação de ter tantos animais.”
No portão de casa, vestida num jaleco branco, em pé e sobre uma poça d’água indicando a limpeza recém-feita, dona Conceição lamenta sobre o que costuma ouvir. “Do lado de lá, sempre me falam: ‘Conceição, cuida do portão para dentro e esquece dos da rua’. Mas eu jamais deixei um cachorrinho caído na rua. Tenho amor de mãe. E quando eles não morrem não consigo doar para mais ninguém. É muito lindo tirar um animal da morte e depois vê-lo com saúde, velhinho”, emociona-se, apontando para Mila, cujo nome é inspirado na atriz Mila Moreira. Segundo conta a protetora, Mila chegou magra, sem conseguir comer. Hoje anda devagar, de velha e de gorda. “Só comigo ela tem 12 anos”, comemora dona Conceição.
Ainda que diante da casa com mais de 140 animais a paisagem seja formada pelos mares de morros verdinhos em folha, pelas laterais se enumeram casas. Aos 63 anos, dona Conceição diz ter consciência do incômodo, causado pelo barulho e pelos odores. A todo momento pede silêncio aos animais e se arvora em deixar tudo limpo. Seu carinho e dedicação parecem ser o que fortalece o elo na rua que faz a ligação entre a BR-040 e o distrito. “Faço o que posso, mas eles latem mesmo. E quando late um, às vezes latem todos. Mas quando não tem perturbação, isso aqui fica um silêncio”, diz. Ao fundo ouve-se uma sinfonia de latidos e miados.
Ceição, a amorosa
Nascida, batizada e crescida nas imediações de Paula Lima, Conceição é um dos dez filhos de um casal que levou a vida trabalhando em fazendas. “Na roça meu pai tinha criação. Sempre tínhamos cachorros. Tive uma porquinha, ela morreu e o pai me deu uma galinha. Quando a galinha morreu, fiquei desesperada. Eu achava que as criações eram todas minhas. Minha irmã conta que uma tatuzinha teve cria fora de tempo e eu ficava com os filhotinhos mortos na mão chorando. O amor está na minha genética. Foi Deus que me deu. E todos são iguais para mim. Choro do mesmo jeito quando morrem, fico triste”, afirma a mulher, que hoje enterra os próprios animais numa área no quintal de casa. Babá desde a juventude, Conceição partiu para Timóteo com uma família e viveu cerca de 30 anos na cidade na região Sudeste do estado. Foi lá, em 1999, que adotou Lulu, o primeiro gato. Desde então, começou a ouvir: “Dona Conceição, tem um gatinho largado na rua!”. Ela seguia para o lugar. “Dona Conceição, tem um gatinho agarrado no mato!”, apontava outro, e ela corria para fazer o resgate. De babá em diferentes casas passou a salgadeira, até que resolveu retornar para a cidade natal quando a mãe adoeceu. “Fui a filha que ajudava com tudo. Eu servia as irmãs quando elas tinham bebês, fazia a canja, embalava a criança, curava o umbigo. Toda vida tive o trabalho de cuidar. Era o esteio da família. Tudo o que acontecia era com a Ceição (apelido na família). Eu era linda, com o cabelo arrumadinho, solto, e chegava com coisa gostosa de comer, todo mundo vinha ficar comigo, me paparicava. Já fui uma mulher que recebia muito bem na minha casa. Tinha gente que passava um mês lá. Quando veio essa batalha com os animais, tudo mudou. Alguns passam para lá e para cá como se não existisse ninguém aqui. Quando eu ligo, me tratam direitinho, mas não aceitam o que faço, têm nojo. Acho que, no fundo, minha família tem vergonha de mim”, diz. E chora.
Geraldo, o parceiro
Desde os primeiros trabalhos, Conceição separava o dinheiro e entregava aos pais. “Eu era doida para trabalhar para sair daquela situação de pobreza. Nossas canequinhas eram de massa de tomate”, lembra ela, que há cerca de 40 anos encontrou o homem com quem divide a casa, a paixão pelos animais e a qualidade da generosidade. “Conheci o Geraldinho, que foi meu primeiro namorado, e falei: ‘Não posso me casar! O dinheiro que ganho aqui é para tratar dos meus pais’. E ele me disse: ‘Filhinha, não se preocupe. Eu também cuido dos meus pais e nós vamos unir as forças. O que eu fizer para o meu pai você vai fazer para a sua mãe. Um ano depois nos casamos. Não tivemos filhos, porque não era para termos, ele teve problema de caxumba recolhida e nós ficamos a vida toda nos dedicando à família. Até que minha mãe ficou doentinha e nós voltamos para Juiz de Fora. Lá eu tinha tudo direitinho, uma casa de dois andares, muito humilde mas toda arrumada, toda encerada. Tinha três banheiros em casa. E eu dormia cada dia num cômodo. Eu tinha muito apego à casinha que construímos”, conta ela, que desde a morte da mãe, há nove anos, passou a se dedicar exclusivamente aos animais. O marido é aposentado e complementa a renda como garçom num restaurante no Centro da cidade, trajeto que percorre de ônibus, em mais de uma hora. Aos 70 anos, Geraldinho não tem descanso. O casal costuma dormir depois das 2h da manhã e acorda três horas depois. Há anos, Conceição é hipertensa e sofre de artrose. “Não fico presa à doença. E não consigo sair de casa, porque quando saio meu marido tem que pedir folga. É difícil”, lamenta. Há pouco mais de um ano, Geraldinho foi diagnosticado com um câncer de próstata. Com medo, o marido pegou a mão de Conceição e perguntou como ela faria sozinha. “Sou uma mulher de fé. A esperança veio para mim três vezes, o gafanhotinho verde ficou mais dois dias, a borboleta também veio duas vezes, filmei ela ontem, e hoje vocês estão aqui”, conta ela, evangélica da Assembleia de Deus.
Maria, a solidária
Ao acordar, Conceição recolhe a sujeira dos animais, lava os espaços, depois vai fazer o café. A limpeza se repete em ciclos e o descanso é sempre menor. Sente sono, mas logo passa. Faz canja para misturar com a ração e para esquentar os bichinhos, cortou os próprios cobertores e dividiu nos canis improvisados. A casa é tomada por vasilhas de ração, grandes galões com materiais de limpeza e alguns animais mais debilitados. Os móveis se perderam, danificados pelos animais ou desgastados pelo tempo. “Entrei nessa não porque quisesse, mas porque a situação fez assim. Perdi tudo quando pus eles dentro de casa. Imagina conviver com 20 cães dentro de casa? Depois foi para 18 e agora veio para 12. Um já dá problema, imagina 12! Tenho o sonho de que nosso Deus vá me devolver um lar. Gato dá despesa, mas não é destruidor. Eu, toda a vida, tive o instinto de não querer deixar no terreiro. Eu falava: ‘Coitdadinho! Quer ficar perto da gente!'”, conta, aos risos, a mulher de sorriso tão acolhedor quanto o abraço, a justificar as frequentes ajudas que ganha. Há quatro anos ela recebe dez sacos de ração de oito em oito dias do Canil Municipal, ainda assim vive envolta em dívidas, seja com clínicas veterinárias e casas agropecuárias, seja com o banco, com o empréstimo consignado que o marido fez para murar a casa e repartir o terreno em áreas distintas. Na próxima terça-feira, dia 21, às 19h30, na Toca da Raposa, um show de prêmios irá reunir fundos para contribuir com a protetora dos animais. “Desse dinheiro de bingo não compro um frango”, assegura ela, que passa aos organizadores do evento os endereços onde têm suas dívidas, para quitação imediata. Rodeada por alguns dos cães, ela diz valer a pena, todo o esforço, todas as perdas e desencontros. “Eles me amam”, comenta, olhando e sorrindo para os bichos. “Quando minha mãe morreu, passei a noite no velório e, ao chegar em casa, não precisei falar nada. Estava com um vestido comprido e eles começaram a puxar. Eu ainda tinha o sofá da sala, e, quando sentei, foi uma confusão. Os cachorros puxavam meu cabelo, meu rosto e queriam, até, tirar minhas lágrimas.”