Um convite para dançar com Daniel em favor da inclusão
Daniel tem 30 anos, síndrome de Down e a certeza de que para ele não há limites; cursando pedagogia, tornou-se símbolo da luta pelo que sempre teve, um professor bidocente
Imagine um espaço cheio de gente e uma música tocando: se ninguém sair de seu lugar, permanece o tédio; se apenas alguns se agitarem, restará o constrangimento de uma interação parcial; se todos dançarem, haverá um baile. “A inclusão é chamar para dançar”, ilustra Daniel Andrade de Almeida. Aos 30 anos, ele oferece uma sensível e complexa metáfora para falar sobre uma vivência que com ele nasceu. “Quer dizer: estar unido, estar junto, não fazer as coisas sozinho. As pessoas são ilimitadas, mas é preciso se colocar no lugar do outro”, diz ele, que tem síndrome de Down e o entusiasmo para dançar e chamar para dançar. “Nada me limitou, mas porque acredito que posso. Todos somos iguais. Por isso que estou aqui, trabalhando, rodeado por pessoas que têm esse valor da inclusão e que sabem que sou capaz de trabalhar. Eu tenho a capacidade de prosseguir com meus sonhos.”
Nas recentes e acaloradas audiências da Câmara Municipal em que foi discutido o acompanhamento do professor bidocente na cidade, Daniel fez coro às vozes que clamavam pela inclusão. Levava consigo o sentimento de pertencimento que conta ter demorado a sentir. Nascido em Leopoldina, mudou-se com a família para Juiz de Fora quando o pai transferiu-se para um novo emprego. Filho mais novo – tem uma irmã, casada e que lhe deu dois sobrinhos -, mora com os pais no Jardim Glória, de onde sai para cursar pedagogia. “Meu objetivo é ampliar meus conhecimentos, trabalhar com crianças especiais na área da educação inclusiva e dar palestras. Quero viajar e ir além. Quero conscientizar os pais, os professores e as pessoas em geral sobre a importância da inclusão. Também tenho o sonho de ser evangelista, de pregar o Evangelho como fala na Bíblia: ‘Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura’. Quero fazer isso e estar junto das pessoas com deficiência.”
Zelo constante
Na dança da educação, Daniel teve como par a tia. “A irmã da minha mãe foi quem me alfabetizou. Ela ficava comigo, me ensinando e me ajudando a fazer os trabalhos. Ela ia para a aula comigo, era a minha bidocente. Ela tinha a formação”, conta ele, que nos anos iniciais estudou numa sala separada para pessoas com a síndrome de Down, sob os cuidados da tia e de uma prima. “Praticamente nasci com ela. Tenho uma prima, a filha dela, com quem sempre fui muito colado. Sempre fomos amigos. Hoje, que ela mudou para o Rio de Janeiro, sinto falta dela, mas continuamos amigos”, diz ele, para logo trazer à memória a didática da tia: “Lembro que ela pegava um caixa e colocava um espelho. Quando abria, a gente se via. Ela ensinava sobre identidade. Eu gostava muito disso. A gente aprendia muita coisa utilizando materiais lúdicos. Tínhamos vários objetivos a alcançar, tudo de forma lúdica.” Também se recorda de ter feito muitas amizades durante a vida escolar, e do interesse em jogar bola. “Eu brincava com um amigo que ia muito lá em casa. Eu o chamava para jogar bola, mas ele não ia, porque gostava de ler. Eu era meio preguiçoso para ler. Hoje, como estou estudando, fazendo pedagogia, estou lendo pra caramba”, recorda, aos risos, o aluno do terceiro período de uma faculdade particular, onde faz a graduação semi-presencial. “A disciplina que gostei mais até agora foi a da educação inclusiva. Meu olhar está nisso, no mundo das pessoas especiais. Aprendi que a gente precisa zelar pelas pessoas, buscar ter mais empenho e garra, e também olhar para o lado político, defendendo a ênfase nessa questão.”
Apoio permanente
Na dança da militância, Daniel teve como par uma amiga, que contou a ele sobre as recentes manifestações na cidade, para as quais seguiu sozinho. “Temos nossos direitos. Nosso grito de guerra é: ‘Crianças especiais têm direito a educação’. Todos temos!”, brada ele, cuja síndrome foi diagnosticada após o parto, quando sua saúde sofreu complicações logo revertidas. A infância foi tranquila, e a escola era uma extensão da casa. “Meu pai, com outras pessoas da Igreja Metodista de Leopoldina, abriu uma escola para os filhos. A minha irmã, quatro anos mais velha que eu, estudou nessa escola particular e regular. E eu também estudei. No meu tempo, não existia inclusão. Mais tarde, a sala das pessoas especiais acabou, e aí fui para outra sala com pessoas que não eram especiais. Assim começou meu processo de inclusão. As crianças me chamavam para várias atividades na escola”, lembra Daniel, que, quando se mudou para Juiz de Fora, foi matriculado na Escola Estadual Fernando Lobo, em São Mateus, e a tia também transferiu-se para cá, continuando a acompanhar o menino, o que mudou quando ele concluiu o ensino médio. “Consegui alcançar meus objetivos. Consegui fazer o curso de magistério sem bidocente e progredi bem. Lembro que o curso era muito difícil, muito puxado. Fui até o terceiro ano e sempre contava com a ajuda de uma colega da sala, que dava uma força fazendo trabalhos, em prova em dupla. Eu agradeço muito a ela.”
Confiança incessante
Na dança da vida, há um ano Daniel tem como par Fernanda, um ano mais nova que ele, com 29 anos. Moradora de Barbacena e também com síndrome de Down, ela é fotógrafa e capoeirista. O namoro segue pelo telefone e por encontros constantes. “Sou autônomo e independente”, pontua Daniel. “Vou para todos os lados sozinho. Pego o ônibus e vou para a faculdade sozinho. Se tiver que resolver alguma coisa na rua, também vou sozinho. Para o trabalho, para o pilates, para a igreja vou sozinho”, acrescenta ele, que com o magistério conseguiu uma bolsa no Colégio de Aplicação João XXIII e, em setembro do ano passado, foi contratado como auxiliar administrativo no Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, o CES/JF, seu primeiro emprego. “Trabalho dentro da biblioteca, atendendo as pessoas, recebo os livros, empresto os livros, jogo tudo no computador”, explica, entusiasmado. “Tenho honra por ter síndrome de Down porque sei me sentir no lugar do outro. Vejo as pessoas como eu com bons olhos”, emociona-se, e conclui: “Tem muita coisa para melhorar. O mundo hoje está difícil, faltam pessoas para ajudar, faltam pessoas que se coloquem no lugar do outro. O mundo precisa de mais respeito.”