Doces e salgados de Lúcia: o sabor por trás dos casos policiais
Testemunha auricular dos fatos: Lúcia há mais de 20 anos vende salgados e bombons na delegacia e ouve os muitos ângulos de uma mesma história
Ao sair da indústria têxtil onde trabalhava, Lúcia Helena Gonzaga decidiu colocar em prática o sonho de ser sua própria patroa. Começou a vender roupas de porta em porta. Era boa vendedora, sempre soube. Uma mulher comprou-lhe algumas peças e, demorando a pagar, passou a receber frequentes visitas de Lúcia. “Ela fazia bombons e enquanto eu esperava ela me pagar, acabei aprendendo a fazer”, recorda-se. A mulher nunca quitou a dívida. E Lúcia percebeu que bombons seriam mais fáceis para vender do que roupas. E, novamente nas ruas, passou a oferecer seu doces. Vendia pela ruas do Santa Terezinha, em portas de fábricas, repartições e lojas.
“Até que um dia, um policial civil me encontrou no despachante do outro lado da rua e me chamou para vender aqui. Comecei no (departamento de) trânsito, vendendo bombons. Depois conheci uma perita e passava de sala em sala vendendo. Todo mundo queria salgados, e uma vizinha minha fazia, então, passei a vender salgados também”, conta ela, na entrada da delegacia em Santa Terezinha, sentada numa cadeira atrás de duas mesas plásticas onde fica uma pequena estufa com salgados fritos e assados. Ao lado, em caixas térmicas, estão sanduíches naturais que faz, sucos naturais e refrigerantes, além de uma banca com bombons de morango e uva, brigadeiros e josefinas.
Nos primeiros anos, Lúcia, que é solteira, subia no ônibus carregada de caixas. “Vendendo salgados, comprei um Chevette 1979, aprendi a dirigir, e já melhorou um pouco, porque passei a vir de carro. Depois troquei por um Corsa e hoje tenho um Classic. Também fiz a minha casa, que não está acabada, mas o que tem lá foi tudo feito com o que consegui aqui”, orgulha-se a mulher de 51 anos, 21 deles servindo e ouvindo os que passam pela principal repartição policial da cidade.
Como um baú
Entre uma mordida e outra, os clientes de Lúcia contam seus casos. “Me dou bem com todo mundo, com os advogados, os detetives, as meninas que trabalham na faxina, familiares, os repórteres. Passa muita história por aqui”, diz ela. Todo mundo conta histórias? “A gente só não pode ficar contando”, responde, cumprindo um acordo informal de discrição absoluta. Da defesa à acusação, passando pelos bastidores, ela costuma ouvir diferentes ângulos de uma mesma narrativa. Transformou-se numa testemunha auricular dos fatos, aquela que sabe pelas informações alheias. “Como está o dia hoje, Lúcia?”, acostumou-se a ouvir. De familiares em prantos aos advogados e delegados exaustos, Lúcia conheceu a emoção por trás das páginas policiais. “No começo eu assustava, agora já me acostumei. A gente fica triste com algumas coisas que acontecem, mas é porque as pessoas aprontam”, comenta ela, com texto pronto para os que lhe pedem salgados ou doces com olhos marejados: “Falo assim: ‘Tenha fé em Deus! Tudo vai resolver! Vou conversando e tentando acalmar a pessoa”. Conhecedora da rotina e do espaço da delegacia, também orienta os que chegam em dúvida, pois bem sabe que nem só a fome consome o corpo.
Como uma máquina
Lúcia se desperta com o sol. “Acordo às 6h, vou no meu pai, dou café a ele, levo no banheiro, dou remédio e depois o levo para fumar. Tomo meu café rapidinho, ponho as bebidas no freezer e adianto a massa. Às 8h, vou ao mercado comprar o que está precisando e, às 8h45, dou banho no pai, mais remédios, deito ele e começo a enrolar meus salgados, até meio-dia, quando começo a fritar. Venho para cá e, quando volto, dou janta para o meu pai, na boca, mais remédios e o fumo de rolo, que eu enrolo. Também adianto doces e massas. Vou dormir por volta das 23h. Todos os dias são assim, de segunda a segunda. Sábado é um dia em que descanso um pouquinho, mas aproveito para lavar roupa”, narra a mulher, nascida e criada no Bairro Eldorado, numa família de quatro irmãos, com a mãe fazendo os trabalhos domésticos, vendendo marmitas e lavando roupa para fora, e o pai trabalhando no Departamento de Estradas de Rodagem. “Minha mãe me ajudava muito, mas faleceu depois que teve um câncer. Com a ajuda dela, eu fazia salgados e doces para festas de criança, na maioria para os policiais civis daqui. Meu pai ia na cidade, comprava chocolate para mim, mas hoje não dá conta mais”, diz, referindo-se ao homem bastante debilitado. “Tenho um filho, de 28 anos, que me ajuda a olhar o pai. Ele faz curso de computador, mas no tempo que não estou aqui, ele olha o pai, que usa fraldas e recebe comida na boca.”
Como uma chef
Até a quinta série Lúcia estudou. “Não sou chegada a estudar, não”, ri. “Na minha casa, sempre tivemos muitas dificuldades. Meu pai ganhava pouco, não sabia ler nem escrever e precisava trabalhar muito”, lembra ela, que aos 13 foi empregada numa malharia que produzia calcinhas e cuecas. Recebia a metade de um salário mínimo para embalar as peças. Não se adaptou nas máquinas que faziam debrum e zigue-zague (acabamentos) e acabou sendo dispensada aos 15. “Depois trabalhei na Cera Maravilhosa, vendi verduras na rua e também passei por outras fábricas”, enumera ela, que, quando passou aos bombons, perdeu muitas latas de leite condensado com erros. “Foi muito difícil no começo. Eu, sozinha, via a josefina na cidade e cozinhava o leite condensado na panela de pressão. Hoje uso o mesmo recheio do bombom de fruta na josefina. Eu ia conversando com as pessoas, e todo mundo ia me ajudando”, afirma. Diariamente, ela costuma levar cerca de 30 salgados, com três preços – R$ 2,50, R$ 3 e R$ 5,50. “Aqui diminuiu o movimento, porque havia mais policiais civis antes, mas o Governo não está contratando”, aponta, dizendo preferir os salgados assados aos fritos e lamentando não poder comer os doces, por conta de um diagnóstico de diabetes recebido há dois anos. “Gosto de bombom de coco, cajuzinho, mas de frutas não gosto muito. Agora mesmo, tive que comer uma fruta, mais foi empurrada. Não sou muito chegada, não.”