Vicente e seus salgados frescos fritos
Resultado da perseverança de Vicente, trailer que vende salgados ao lado do Terreirão do Samba guarda histórias de superação
Era para Vicente alterar a rota. “O botijão de gás ficou vazando depois que o cara trocou. Aí explodiu. Pegou fogo em tudo, nos salgados e no carrinho. Tive que começar tudo de novo”, conta ele, Vicente Ferreira Coutinho, um senhor com 59 anos de insistências. Havia apenas um ano que ele havia arriscado vender salgados na esquina entre a Avenida Brasil e a Rua Leopoldo Schmidt, que ladeia o Terreirão do Samba. A obstinação em retornar para a família o fruto de seu esforço, porém, não havia se consumido com as chamas.
“Teve um senhor que veio aqui, viu que estava tudo queimado e falou: ‘Pesquisa em três lugares, três orçamentos diferentes, que eu vou ver o que posso fazer por você’. No domingo seguinte, eu vim e ele estava me esperando. Assinou um cheque e falou que era para eu colocar meu trabalho em dia e, se precisasse de alguma coisa, poderia falar com ele. Não sabia quem era o homem que pagou tudo para mim, para arrumar a carrocinha toda. Quando fui saber, era um juiz”, recorda-se Vicente, há 16 anos num ponto onde, em 2005, a carrocinha transformou-se no trailer que ele abre às 6h e fecha perto do meio-dia.
Acabam os salgados, Vicente começa outra jornada. “Saio daqui e vou direto para o supermercado fazer compra. Chego em casa e cozinho o frango. Tenho que ajeitar tudo, cortar e deixar pronto para fazer, na madrugada, a massa e o recheio. Levanto 1h30 da manhã para fazer a massa e o recheio. Fico o dia inteiro por conta, mas faço o que gosto e tenho prazer em vender”, emociona-se o vendedor, que dorme cerca de quatro horas por dia, tudo por conta de uma estufa recheada por cinco tipos de coxinha (comum, com requeijão, napolitano, quatro queijos e bacon), quibe, rissole, salsicha e bolinho de ovo com carne moída.
Os domingos que forjaram recomeço
Funcionário de um abatedor de frangos, Vicente resolveu continuar na área quando não foi possível manter-se no emprego. “Resolvi vender frango abatido na feira (da Avenida Brasil). Comprava e revendia. Fiquei oito anos. Antes dos mercados abrirem aos domingos, valia a pena. Foi então que abri uma lojinha no Furtado de Menezes para mexer com frango também. Achei que poderia vender salgados. Comprava e revendia. Aí pensei em fazer meus próprios salgados. Fui aperfeiçoando até chegar nesse ponto, que todo dia está a mesma coisa, há 16 anos, porque só eu que faço”, conta ele, aprendiz de uma experiente salgadeira. “Quem me ensinou foi a Cida, que fazia salgados para a Pipita. Quando eu tinha a casa de frango, vendia para ela e aprendi a receita”, diz ele, que decidiu retornar às ruas quando fechou a loja e não via perspectivas de um novo emprego. “Comecei a procurar serviço, mas estava difícil. Achei esse ponto, e o rapaz passou para mim. Foi difícil no começo. Com o passar do tempo, a freguesia foi aumentando. Todo mundo passa aqui. Tenho freguês do Demlurb, da fiscalização, da guarda, gente da Justiça Federal e da MRS. Todo mundo come. E todo mundo gosta de mim”, orgulha-se o homem de voz baixa e pele muito clara, dono de uma humildade capaz de fazer qualquer um compreender o gesto do juiz que lhe ajudou a recompor a carrocinha.
A descendência que despertou a reconstrução
“Já passei muito aperto”, emociona-se Vicente. “Aqui nesse trailer, até chorei. Quando começou era difícil vender dez salgados por dia. E eu tinha família. Às vezes tinha que vender três ou quatro salgados para comprar um litro de óleo. Ou comprar gás fiado para pagar no outro final de semana. Eu vinha de ônibus, tinha que pegar quatro sacolas pesadas para chegar aqui. Tive que insistir, forçar a barra até conseguir. Minha esposa apoiava, e foi o que ajudou a dar certo”, conta, referindo-se à esposa Rita, professora nos bairros Santa Cruz e Vila Ideal. Diferentemente da mulher, Vicente estudou apenas até a quarta série. “Na época era tudo muito difícil, então tive que trabalhar”, lembra o homem nascido em Bias Fortes, na Zona da Mata, filho de um pedreiro e de uma dona de casa. Ao lado dos pais e dos 12 irmãos, mudou-se aos 6 anos para Juiz de Fora. “Aos 10, já estava vendendo pão de casa em casa. Depois fui trabalhar em horta, em Matias Barbosa. Fomos morar lá porque era melhor para mexer com roça. Fiquei até os 18 anos, depois fui trabalhar numa fábrica de soda cáustica. Trabalhei um bocado num lugar, outro bocado em outro”, rememora ele, que para a única filha, Marina, de 23 anos, reserva trajeto distinto. “Ela estuda engenharia”, orgulha-se o pai. Todos os dias Vicente fabrica a massa e o recheio dos salgados que frita na hora. “Venho com uma cota certa. Não adianta ficar aqui o dia todo e não ter para o dia seguinte”, pontua, enquanto uma dezena passa à frente do trailer questionando se tem mais. “Só amanhã”, responde o homem, o mesmo que cede, aos domingos, dia da tradicional feira, o ponto para Gumercindo, o rapaz que diariamente lhe auxilia na montagem dos salgados.