Num dia de domingo
Não era carnaval, mas o povo foi para a praça. Muitos de nós levávamos ainda muitas feridas abertas, que escondíamos atrás de um silêncio ensurdecedor. Mas não há vazio que não possa ser preenchido. Precisávamos de um momento. Talvez ainda precisássemos de muito mais, mas aquele encontro era imprescindível. Foi como tinha que ser. Ela chegou, ainda estava com um pouco de preguiça, mas se permitiu ser e estar. Levou com ela um pote com pequenas partículas do dourado do sol. Sem pudor, se vestiu de astro-rainha. Recuperou parte do brilho radioso que sempre a acompanhou. Fez brincadeiras e foi espalhando um pouco do brilho que tinha em mãos com todos nós. Também jogou um pouco no ar e levou sua luminosidade para alguns metros mais longe. Abriu-se um sorriso.
Eu a vi abraçar muita gente. Gente de todo canto, gente de todo jeito, gente de toda cor, gente de toda forma. Emprestava, generosamente, um pouco do seu brilho a todos que envolvia com seus braços. Ria-se disso, dizendo que a outra pessoa saía suja do abraço. Mal sabia que elas eram iluminadas. Os tambores foram chegando e entrando em forma. Nos postamos diante deles. Ouvíamos sua vibração e ela fazia nossas células cansadas vibrarem junto. Acordou sentimentos que estavam há muito tempo sufocados pelo ar pesado, pela nuvem densa e triste que pairava sobre todos. Havia uma troca de energia que nos levava para outro canto. Estava de olhos fechados, mas via o calor das batidas ritmadas. De repente, formou-se uma roda. Senti ela me puxar pelo braço. “Vamos!” Fui. Nos juntamos à ciranda. Redescobrimos a brincadeira de roda. Redescobrimos o gosto e o sabor da festa.
As mãos se soltaram e voltamos a rodear os tambores. No dia abafado e quente, os corpos suavam até encharcar os cabelos e buscávamos abrigos nas sombras das árvores, onde encontrávamos frescor. Foi quando os céus nos presentearam com um pé de vento, que, pelos meus cálculos, durou alguns minutos. Gentilmente, a brisa roubou de nós um pouco do brilho e fez cair lentamente folhas de árvore em trajetórias fluidas, jogando sobre nós um confete natural. O brilho levado pelo vento não fez falta. Porque àquela altura, já estávamos emitindo nossa própria luz.
Seguimos cantando, dançando, encontrando pessoas, conhecendo outras. A paleta cinza que poluía o olhar há algum tempo foi se dissipando. A energia daquele carnaval fora de época nos fez voltar a ver vida, a interagir com esse mistério, a despertar de toda e qualquer dureza alienante do cotidiano. Ela nos alimentou e matou uma sede que durou tempo demais.
Quando cheguei em casa, ainda tinha pedaços de sol na minha pele. Sorri sozinho, enquanto cantarolava, “Santa Clara clareou e quando aqui chegar vai clarear”. Enquanto soubermos o valor da festa, do compartilhar esse momento, vamos estar esperando para rever essa luz, esse momento do povo. Juntos. Abraçados. Alegres. Pelas praças e pelas ruas da cidade. Continuamos cientes de que nada será como antes. Mas vai resistir em nossos corpos um gosto do sol que dividimos.