Sobra a rádio para Adalberto
Ao sair do expediente, Adalberto, 49 anos, comprou quatro latões com o pouco que ainda resta do orçamento de março. Afinal de contas, já é dia 20. Na verdade, três seriam suficientes para a noite. Não porque o jogo seria entre Flamengo e Resende, apenas a 4ª rodada do Campeonato Carioca. Mas, sim, porque, nos últimos meses, sempre cochila quando o latão meia. A alternativa, então, mesmo que resignada, é tapá-lo com um papel toalha para arrematar quando lhe sobrar coragem no dia seguinte.
– É uma tradição – resmunga, como se houvesse sido questionado, mas mora sozinho – Para o Carioca, são quatro. Quatro.
É como se três lhe ferissem o orgulho. Porém, já há um bom tempo deixa de comprar aquela linguiça mista, fininha, muito prática do Açougue do Paulinho, que lhe tirava gosto em dias de jogos úteis. A decisão não foi uma daquelas motivadas pelos altos índices de colesterol, mas, se Adalberto quisesse comer carne vermelha por sete dias, abrir mão do tira-gosto era imperativo. Como havia chegado em casa às 20h, uma hora mais tarde, com os times em campo, desceria os latões do congelador. Às vésperas do crime, entretanto, não sabia onde o jogo seria televisionado.
– Moreira – começa a gravar o áudio após abrir a conversa com o amigo, também rodoviário, no zap – onde é que vai passar o jogo do Mengão?
O companheiro é mais bem informado, é verdade, mas desde que começou o regional, Adalberto se irrita semanalmente, pois já não sabe de cor e salteado em que canal pode assistir aos jogos do time na televisão aberta. Ao contrário de Moreira, nem gatonet tem.
– É Record, é SBT… até FlaTV. Quem paga um negócio desse, gente? – volta a murmurar, já em tom de deboche.
Adalberto se lembrou, inclusive, que nem a máscara tirou do rosto. Quando caminhava para o quintal, o celular apitou. Era Moreira.
– Adalberto, hoje é na TV do bispo, mas tem um negócio de praça que não entendi muito bem. Dá uma olhada porque parece que vai passar só para o Rio – responde o amigo, que, no Carioca passado, antes da pandemia, ao menos lhe fiava a gatonet em casa.
O rodoviário, surrupiado, camisa azul desabotoada e máscara pendendo por uma só orelha, deu meia volta em direção à casa. A antena conectada à TV não pega a Record na posição em que estava. Estressado, Adalberto deixou a empreitada para um pós-banho. Paciência não é lá o seu forte. Ao deixar o banheiro, mal pendurou a toalha no varal e voltou para a sala.
– Ah, lá, olha o desaforo dessa televisão – irrita-se, pois o jogo já havia sido iniciado – Nem imagem congelada tem. A porcaria da antena nem para em pé, olha só…
Irritado, Adalberto volta para a cozinha, desce os latões e posiciona o banquinho de madeira tripé que tem em frente ao antigo aparelho de rádio, sobre o armário entre o saco de pães de sal e a cestinha com as contas do mês.
– Ao menos na rádio o Michael vai jogar como o Uri Geller – sentencia ao encher o copo americano.