Outras Ideias com José de Paula Filho
Para minha avó, que por muitos anos costurou para escolas de samba de Juiz de Fora, Angela Maria sempre foi sinônimo de festa. Contava-me que quando ela passava na avenida, não havia um que não festejasse. Aquele carnaval que não presenciei, reconheci nas palavras do personagem que fez história na cidade usando o nome da cantora cujo registro é Abelim. “Há muito tempo um amigo meu disse que eu precisava de um nome de guerra. Por fazer parte das ‘coloretes’, ele sugeriu Angela Maria. Ela é mulata, eu sou preta, mas tudo bem. Eu e ela trabalhávamos em casa de família, e aceitei. Hoje todo mundo me conhece assim”, conta. Pergunto-lhe, então, como se apresenta: “No meu Facebook estava como Angela Maria, mas como converso com padres, bispos, preferi passar para Zezinho de Paula. Meu nome já é propício: José De Paula”, diz, frisando a composição.
“A” Angela ou “o” Angela? “Não preciso aparecer no feminino. Eu sou eu. Pronto, acabou.” Mas fala obrigado ou obrigada? “Depende com quem falo”, responde. Compreendo, assim, o que, intimamente, agrada a ela. Espirituosa, sempre com uma metáfora na ponta da língua, Angela enfrentou o conservadorismo da década de 1960 e a cidade que criou a Lei Rosa. A todo tempo precisou combater. “Juiz de Fora e Minas Gerais são muito cheias de coisinhas. Sempre enfrentei o preconceito. Defeco para a sociedade e limpo com a opinião pública”, dispara, para logo dar lugar a uma ternura envolvente: “Sou como uma ponte. E ela nunca reclama das águas que passam sob ela. Muitas já passaram, e agora espero outras águas maravilhosas”. Pelas águas que navegou, Angela circulou por todas as rodas, da alta sociedade aos morros. “Sempre adorei tumulto”, confirma. E continua a gostar, mesmo que nas lembranças. “O tempo vai apagando, mas faço questão de que ele não me apague e não apague o que vivi.”
‘Canto, só na cama’
Os 71 anos, os cabelos grisalhos, a fala mais mansa e os gestos mais contidos escondem, de alguma forma, a irreverência de outros carnavais. “Em 1983, comecei a desfilar. Gostava muito”, conta. Saía nas alas? “Não. Só saía de destaque. Meu bem, se você não pode ser a panela, o arroz você não vai ser”, brinca a foliã, que guarda no coração a verde e rosa Partido Alto. Sem saudosismos, mostra fotos de desfiles, vestida de baiana, com uma sunga marrom debaixo de uma calça arrastão e sem camisa, entre outros adereços cheios de plumas, paetês e muito brilho. Há 12 anos, parou de desfilar. “Não gosto daquele carnaval lá no canto (na Avenida Brasil). Canto, só na cama”, diz. Inocentemente, concordo, dizendo. Não dá não, né?! “Dar até que dou”, pontua Angela, sem perder nenhuma piada.
‘Fui para o Pronto Socorro linda’
A mesma falta de encantamento com a passarela de hoje, Angela Maria diz ter com os campos. “Desanimei com o Tupi. Vai, vai, vai e nunca vai. Assim não dá”, comenta a protagonista de uma das históricas brigas entre Atlético e Tupi. Era 1984, e o Carijó venceu por 2 a 1 contra a equipe belo-horizontina, defendida por, entre outros, Éder Lopes. “Ele escarrou na cara do torcedor. No fim da partida, peguei e falei: Esse colega me paga. Pedi ao segurança para entrar, ele resistiu, e eu disse: Você me conhece! Deixa! O Éder estava dando entrevista, e eu dei um chute no saco dele. Ele veio e me deu uma cabeçada. Ele foi para a delegacia, e eu, para o pronto socorro, toda linda”, recorda-se, às gargalhadas. Apesar de não aparecer mais nos estádios, a folclórica torcedora diz assistir às partidas em casa. “Não gosto de ver jogos com os outros, porque as pessoas não sabem o que falam, e eu durmo em hotel mas não levo desaforo para casa.”
‘Se quiser, vem com tudo’
Quando saiu de casa, aos 7, Angela Maria, irmã de 14 (hoje restam, somente, três), só queria ser verdadeira consigo e com o mundo. “Meu pai me pegou fazendo arte e me mandou morar na zona. Minha mãe brigou comigo e fui morar com os outros e depois trabalhar em casa de família”, conta. Cedo, parou de estudar, o que só foi continuar já mais velha, indo até o ginásio. Trabalhou em pensão, boate, loja de aviamentos, tecidos. Nascida no Bonfim, hoje, aposentada, vive numa casa no alto do Caiçaras, diante da Escola Circo Carequinha. Sozinha, divide seus dias com um problema no coração, dores no joelho e outros pequenos incômodos. “Agora minha escola de samba é dos ‘ites’: artrite, bronquite, bursite e todos os outros ‘ites'”, ri. “Gosto de trabalhar, mas em Juiz de Fora não dão emprego para pessoas que passaram de certa idade, infelizmente. Aí fico aqui. Tem horas que deixo minha casa ficar um pouco suja e dou uma de faxineira nos finais de semana, para poder fazer alguma coisa”, conta ela, que todos os dias vai à igreja. “Conversar com as pessoas é bom, mas com Deus é muito melhor. Estou afastado, mas sou da Legião de Maria, do Dízimo e do Grupo de Oração”, diz. Acha difícil envelhecer?, pergunto, numa quase retórica, certo de que Angela Maria continua a ser o mesmo sinônimo de festa do qual minha avó se recorda. “Infelizmente é a realidade. Não tem outro jeito. Tem que encarar o tempo. Vai querer ou não?! Como diz a Regina Casé: Se quiser, vem com tudo”, diz. Rimos, os dois.