Violência contra ônibus do Fortaleza reforça debate sobre saúde mental no futebol
Psiquiatra juiz-forano Helio Fádel reforça importância do tratamento psiquiátrico no esporte em meio às pressões exercidas sobre os atletas
No último dia 22, um ônibus que carregava a delegação do Fortaleza foi alvo de pedras e bombas arremessadas pela torcida do Sport na saída da Arena Pernambuco, no Recife. Seis jogadores foram feridos na ocorrência e precisaram ser hospitalizados. O atacante Thiago Galhardo precisou ser afastado para tratar sua saúde mental em decorrência do episódio. “Hoje me encontro de uma maneira interna na qual nunca me vi antes. Estou angustiado, me sentindo profundamente abalado e com momentos de crises de pânico que não desejo para ninguém. Quem sente ou já sentiu isso vai entender bem do que estou falando”, postou o atleta em suas redes sociais.
Cada vez mais discutida, a saúde mental no futebol é uma das questões primordiais no esporte atualmente. Enquanto os atletas são frequentemente idolatrados pelos fãs e mídia, as pressões e desafios psicológicos que enfrentam nos bastidores passam despercebidos. Alguns deles, como Calleri, do São Paulo; Dudu, do Palmeiras; Richarlison, do Tottenham e da Seleção Brasileira, já falaram sobre o assunto. Para entender um pouco mais da questão psicológica no futebol, a Tribuna entrevistou o psiquiatra juiz-forano Helio Fádel, de 35 anos, morador do Bairro Altos dos Passos.
Formado em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora, Helio já passou pelo Tupi, em 2018. Ele é membro da Sociedade Internacional de Psiquiatria do Esporte (ISSP) e pós-graduado em Medicina do Exercício e do Esporte (Cetrus/SP). Foi também o autor do 1º livro brasileiro sobre Psiquiatria do Esporte, prefaciado pelo Zico, em 2018. No momento, o juiz-forano trabalha como psiquiatra do Comitê Olímpico do Brasil (COB).
“Saúde mental é prioridade”
Em todos os esportes, desde o nível amador recreativo até o de alto rendimento, há necessidade de uma preocupação com a saúde mental, afirma Helio. “Existe a necessidade de resultados e, em níveis variados, pressão. Quando falamos do futebol profissional, o processo é bem delicado, pois existem pressões internas e externas em altíssimo grau e constantes. Nós podemos afirmar que o esporte de alto rendimento, em si, não é saudável, pois leva o atleta ao limite de exaustão – física e mental. Eles foram ‘educados’ a não poderem sentir, se expressar, demonstrar receios ou dores. Mas são seres humanos passíveis de qualquer tipo de sofrimento”.
“Quando você tem um ambiente disfuncional (fator estressor mantenedor), a chance de ocorrência de transtornos mentais é real e verdadeira. Estamos falando de pessoas que trabalham e vivem ‘inspecionadas’ a todo o momento, com suas vidas expostas, julgadas e muitas vezes massacradas nas redes sociais, que muitas vezes deixam de ir a lugares públicos por insegurança e, não menos importante, que geralmente vieram de um histórico de vida familiar difícil e sem estrutura. Tudo isso faz com que a saúde mental seja prioridade no futebol e demais esportes de alto nível”, completa.
Na sua visão, os atletas têm, cada vez mais, adquirido informações sobre a importância do acompanhamento psiquiátrico, fazendo com que exista uma reação em cadeia favorável para outros atletas pedirem ajuda. “Antes, havia a conotação de inferioridade, fraqueza mental ou incapacidade. Hoje em dia, já há uma compreensão de evolução, autocuidado e busca por melhores resultados na carreira e por qualidade de vida”, enxerga.
Outro exemplo de jogador que reconheceu a melhoria após o tratamento psiquiátrico é Michael, ex-atleta do Flamengo e hoje no Al-Hilal. Ele publicou, em 2022, uma mensagem de agradecimento a Helio e outros profissionais em sua despedida pelo rubro-negro. “Tinha dias que eu estava mal. Tinha dias que eu não tinha vontade de levantar da cama (…) Todos nós temos problemas na vida pessoal, com família, ou com você mesmo. E aí eu tenho que agradecer muito ao Marcos (Braz), Bruno (Spindel), ao meu psiquiatra, que é o doutor Helio (Fádel) (…), porque foi terapia constante”.
Onde estão os profissionais?
De acordo com reportagem publicada pelo site Trivela no último mês, apenas metade dos times da Série A do Campeonato Brasileiro possuem psicólogo próprio para os atletas. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) também não conta com profissionais da área. Em sua experiência, Helio vê que os clubes estão abertos, mas há dificuldade na parte da execução dos processos.
“O futebol possui crenças e rotinas difíceis de serem modificadas. Além disso, é um tipo de trabalho que requer uma especificidade e compreensão muito grandes da sua cultura. Nem sempre as tentativas de implementação de trabalhos perduram por muito tempo. Mas poucas pessoas sabem que, nos cursos de formação dos treinadores, há módulos muito bem elaborados sobre psicologia do esporte. Ou seja, há espaço e aplicação teórica para o assunto. Mas falta pragmatizar e colocar em prática de alguma maneira ainda não compreendida. Talvez essa sintonia ainda possa ser melhor aperfeiçoada e os processos bem implementados. Sou a favor da criação de um Departamento de Saúde Mental (com psicólogos e psiquiatra do esporte) em articulação com o Departamento Médico dos Clubes”, propõe.
Momentos e benefícios
Perguntado sobre os momentos em que os torcedores podem ver o aspecto mental incluso no esporte, Helio diz que “quando você assiste a um jogo e observa um padrão de respiração e postura do atleta, por exemplo, antes de bater uma falta ou pênalti, pode ter certeza que faz parte de um treinamento mental que ele desenvolveu. A própria mentalização, que eles podem fazer pouco antes de entrar na partida (muitos fecham os olhos, repassando gestuais esportivos), também é uma forma de treinar a mente”. O psiquiatra ressalta, ainda, que cada atleta possui uma forma de se estimular, concentrar e relaxar. Por isso o trabalho deve ser individualizado.
A partir do cuidado com a saúde mental, os aspectos pessoais, familiares e o próprio rendimento são melhorados, de acordo com o psiquiatra juiz-forano. “Cuidar da saúde mental abrange desde prevenção e tratamento de sofrimentos até a melhor preparação mental (treinamento de habilidades mentais) para melhor performance esportiva. Existe uma frase clássica que diz: ‘mens sana in corpore sano’. Ou seja, uma mente sã em um corpo são. A verdade é que não se pode dissociar a mente do corpo. Trata-se de um sistema único e integrado. A forma como o atleta cuida da mente vai impactar no seu desempenho físico, e vice-versa. O trabalho mental no alto rendimento é complexo, mas muito eficiente quando bem desenvolvido. O atleta fica mais conectado com as próprias emoções, aprende a trabalhar com a imprevisibilidade, reduz a interferência dos estímulos negativos, melhora seu foco e concentração, dentre outros”, esmiúça.
O que fazer quando a saúde mental é afetada?
Em casos como o de Thiago Galhardo, o melhor cenário é um acompanhamento contínuo para a criação de um vínculo positivo entre médico e atleta, reforça Helio. “Intervenções pontuais em momentos-chave tendem a apresentar limitações, que começam na própria adesão. Uma vez que você já possui um profissional incorporado ao clube, tudo fluirá com maior naturalidade. Da mesma forma que ele possui o médico do esporte, nutricionista, fisioterapeuta, massagista (cada um capacitado para determinado trabalho), haverá também o psiquiatra ou psicólogo que cuidarão dos aspectos de saúde mental – antes mesmo que um problema ocorra. Quanto mais precoce é a abordagem, melhor é o prognóstico, sempre”.
Mesmo que a situação tenha sido externada pelo atleta e clube, o juiz-forano garante que só mesmo avaliando a situação para saber qual plano terapêutico pode ser traçado. “Observando o evento que aconteceu, nós, profissionais da saúde mental, nos preocupamos com o eventual desenvolvimento de transtornos como o estresse pós-traumático ou mesmo crises de pânico e ansiedade. No entanto, o trabalho pode envolver outras questões a depender dos sintomas e manifestações clínicas da pessoa. De uma maneira geral, a psicoterapia e acompanhamento psiquiátrico (com ou sem uso de medicações auxiliares) estariam indicados”, fala.
Futuro com mais saúde mental
No entendimento de Helio, a conscientização da saúde mental no esporte está numa crescente, porém caminhando lentamente, e varia entre as modalidades em virtude da cultura de cada esporte.
“O futebol, por exemplo, me parece o esporte mais difícil de se implementar processos. Tanto pela sua grandeza, visibilidade, poderio como negócio e paixão envolvidas. Além disso, ainda é um dos esportes mais machistas, em que o sofrimento mental pode ser visto como frescura. No esporte olímpico, por outro lado, percebo uma aceitação maior quanto aos trabalhos em saúde mental, tanto que o próprio Comitê Olímpico já possui seu psiquiatra e psicólogos que atuam incansavelmente (e preventivamente) em prol dos atletas brasileiros”.