O concerto de dedicação do pianista Moisés Mattos
Em passagem pelo Brasil, pianista Moisés Mattos, radicado na Alemanha, conta história de disciplina, talento e persistência
Tinha 8 anos quando de um lado colocou o violino sobre os ombros e com a outra mão empunhou o arco. Aos 12, Moisés Natividade de Mattos já era professor de violino na igreja (Congregação Cristã no Brasil) onde aprendeu o instrumento. “Mas meu sonho sempre foi tocar o órgão da igreja, o que era proibido para os homens. Quando todo mundo saía, eu ia ao órgão e tocava. Sempre gostei de coisas proibidas. Mais tarde, descobri o piano na casa de uma amiga, pela televisão, porque na minha casa nem televisão tinha. Estava tocando (Vladimir) Horowitz e falei: quero tocar esse instrumento! Onde tem esse instrumento? Fiquei sabendo que tinha numa escola de música da cidade”, lembra-se ele, que sem dinheiro para a passagem de ônibus, partia do São Pedro onde morava e seguia a pé até a Rua Batista de Oliveira para tentar adentrar o Conservatório Estadual de Música Haidée França Americano. “Fiz amizade com os porteiros e vigilantes, e eles abriam caminho para mim quando estavam arrumando as salas. Às vezes, eu era barrado, em outras, não. Na minha casa, não tinha mesa, e na maioria das vezes eu estudava no balcão de trabalho do meu avô, com um piano imaginário. Depois de três meses, um amigo meu me levou a uma aula que o André Pires dava na Universidade Federal (de Juiz de Fora). Eu tinha 14 anos. Cheguei falando que era pianista, mas tinha três meses que eu tocava no conservatório. Toquei para o André, e ele me perguntou há quanto tempo eu tocava: falei três meses com a sensação de 30 anos, porque eu me sentia um profissional da área. Ele disse: para ter aula comigo tem que ter três coisas: disciplina, talento e persistência”, conta. Moisés tinha as três.
Sonata do encontro
Três meses foi o tempo sugerido pelo professor André Pires ao aluno Moisés. Três anos e meio foi o tempo que aquele período se tornou. Sob sol ou chuva, o jovem seguia a pé até a casa do mestre, no Bairu. Eram aproximadamente sete quilômetros que Moisés percorria em cerca de duas horas. “No caminho eu aproveitava para exercitar os idiomas. Eles (André e a esposa Luiza) viraram meus pais adotivos. Foram eles que me deram a base toda. Sou muito grato. Sempre valorizo e faço questão de, em todo concerto, falar o nome dele, em qualquer lugar, seja na Hungria, seja na França. Se não fosse ele acreditando e me dando chance, eu não teria saído do lugar”, emociona-se Moisés, convidado para gravar uma faixa no novo disco do mestre. “Ele foi mais do que um professor. O André me deu aula de vida, de como ser um ser humano, me apresentou história geral e música, sem dúvida. Sofri muito preconceito e chegava chorando na casa dele. Ele era meus ouvidos e me dava orientações. A esposa dele também me recebeu com muito amor. Para eles, eu era parte da família. Quando eu chegava, a gente almoçava junto. Ele colocava meu horário perto do almoço porque sabia que eu tinha uma jornada longa”, recorda-se o pianista hoje com 30 anos, filho de pais analfabetos e com transtornos mentais. “Sou o pai dos meus pais. E para mim é difícil viver lá fora”, diz o filho de Maria de Fátima e do vigilante Paulo Roberto e irmão de Samara. “Como minha irmã sempre teve mais necessidades (ela tem síndrome de Down), o foco era maior nela, mas percebo que recebi muita atenção e carinho dos meus pais”, diz. “Lembro também que sempre me senti muito adulto. Tinha um amigo, aos 11, com quem eu falava que tinha 18 anos. Sempre me entendi com pessoas bem mais velhas, nunca tive amigos de minha idade.”
Marcha alemã
“Toque o frio! Agora toque o calor! Agora, Moisés, toque uma árvore redonda! Agora toque uma árvore achatada”, pedia-lhe a professora de eurritmia (dança com formas orgânicas) de uma escola antroposófica da cidade. O pianista acompanhava as aulas e se divertia com os improvisos. Numa ocasião, viajou até São Paulo para tocar num curso da professora. “Aprendi alemão muito rápido. Em três meses, falava fluente. Aprendi sozinho. O André me sugeriu um livro (método Assimil), no qual aprendi a falar fluente sete idiomas. Se tem garra e persistência, dá certo. Os alemães e os austríacos, nesse curso, me perguntavam quantos anos eu havia morado na Alemanha. Eu não havia saído do Brasil. Eles achavam que eu falava muito bem. Foi, então, que conheci o Luiz, ele conheceu minha história e perguntou o que eu precisava para ir para a Alemanha. Ele me deu as passagens e aquele foi meu primeiro impulso para ir embora”, conta ele, esperado no país alemão por um amigo. O projeto de Moisés era, com as referências de Juiz de Fora, lecionar numa escola de pedagogia Waldorf. “Só percebi o que estava fazendo, dentro do avião. Mas tive muita sorte. Não foi fácil, teve momentos em que passei fome, tinha uma banana para dividir para a tarde e para a noite. Eu me empenhei e consegui dar aulas. Trabalhava como repetidor, fazendo concertos e lecionando”, enumera ele, que estudou todos os anos e concluiu o ensino médio na Escola Municipal Tancredo Neves, próxima de sua casa. Tempos depois de sua chegada a Hamburgo, o músico começou a encher casas e tornou-se uma figura conhecida, até ingressar numa universidade. “Conheci uma grande brasileira, a pedagoga Ivone Bambirra, que mora há mais de 30 anos na Alemanha, tem um nome muito conhecido e me incentivou dizendo: ‘Moisés, você tem que fazer um curso superior!’. Ela me deu uma bolsa e fui estudar. Num dos vestibulares que fiz eram 300 pessoas para duas vagas. Era muito difícil”, recorda-se ele, que foi aprovado por três instituições e decidiu ingressar na Universidade de Bremen.
Solo para o futuro
Música para Moisés “é uma língua universal na qual posso unir culturas diferentes”. Assim, ele une Brasil e tantos outros cantos. “A gente pensa que é só no Brasil, mas na própria Europa tem esse medo da música erudita. Por isso dou um concerto didático. Estou convicto de que para esse século as pessoas exigem essa proximidade do músico com o público. Como pianista, estou contando uma história. Toco uma sonata de Beethoven, de sete séculos passados. Meu Deus, quanta filosofia, quanta história há nisso! O que acontecia historicamente para que ela surgisse? Eu transmito isso numa outra época, por isso me vejo como mediador”, defende Moisés, apontando que, como no Brasil, os concertos na Europa também têm como público predominante as elites. “As pessoas me identificam como romântico, mas adoro o barroco, o clássico, o moderno também”, diz ele, que se propôs a executar conterrâneos pouco conhecidos na Alemanha, como Ernesto Nazareth, que apresentou para uma plateia que sequer sabia a existência. Numa carreira que soma mais de uma década, o pianista já viajou a Europa em turnê e tocou em países como Hungria, Suíça, muitas vezes acompanhando respeitadas orquestras. Preconceito racial diz ter vivido em três episódios nas terras europeias. “Já no Brasil isso começou já no maternal. De lá até os meus 17 anos, foram inumeráveis. E às pessoas que disseram que eu nunca seria artista, sou grato, porque me deram um impulso. Eu gostava de me superar”, fala, sorrindo. Dia após dia, ele parece confirmar a disciplina, o talento e a persistência sugeridos pelo mestre André Pires. “Estou há muito tempo fora e conheço grandes nomes da música. Vejo o sofrimento deles. É uma vida prazerosa, mas muito ingrata. Por isso, não quero ter a vaidade de ser “O” pianista. Quero poder continuar me comunicando com as pessoas. Não tenho o compromisso de ser famoso. Meu compromisso é com a arte, com o ser humano.”