Terra sem acalanto, de Felipe Moratori
Mais poderoso que o urso de ferro, o dono do urso de ferro, e de todas as cavernas para o urso edificadas naquele barranco, ouvia o vô falar, cantarolar e tocar seu acordeão de oito baixos, enquanto olhava todo o bairro por cima. Gostava das falas e do acordeão do vô, aquele que, visto por todos do morro abaixo, era ainda mais poderoso que ele, já que havia comprado o urso de ferro na feira da Brasil e era o senhor da colher de pedreiro fundamental para aquelas escavações.
Ousava dizer muitas vezes que só ele entendia o nome do bairro. Que Jardim Natal não tinha nada a ver com Jesus ou com fim do ano, tampouco com histórias de antiguidade, essas coisas de bíblia. Dizia que na verdade ali era o lugar onde nasceu nossa cidade, que é jovem. Mas que debaixo de tanta terra, havia, aí sim, muito passado e ensinamento.
Quando não tocava acordeão com seus acalantos originais, às vezes o vô era visto aprontando molecagens. Em dias de muito sol, pegava o espelho velho do banheirinho, com sua moldura laranja de plástico, e mirava por dentro dos terreiros e janelas das casas abaixo, brincando de cegar as donas e donos e cães e mecânicos e loucos, crentes e moleques atentados. Jamais os motoqueiros e motoristas, ele dizia, porém.
Enquanto seu urso sentia os frios do ferro e do barro, calado como sempre ele ouvia o vô cantarolar. Insistia que os acalantos tinham algo sobrenatural, especialmente quando eram aprendidos dos antigos, quer fossem dos sábios ou dos velhos mais bestas. Disse que aquele acalanto ele tinha inventado pra acalmar os moleques atentados das ruas debaixo. E que era por isso que ele, o dono do urso de ferro, era tão tranquilo e, mesmo que menor, ainda não tinha expressado impulso de se misturar com aquelas pragas fugidas pra rua.
O poderoso dono do urso de ferro ainda não entendia o que o velho queria dizer com aquilo, e certamente achava que ele, seu vô, era um dos velhos bestas.
Não está descartada a possibilidade de ser decretada situação de emergência no município.
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Calado, o rapaz fechou-se no quarto para uma oração. Suco gástrico à boca. Risos entre deboche e desespero vinham da rua que ainda estava chuvosa e agitada. Não sabia muito bem fazer orações naquele momento. As orações não faziam sentido. Fechou-se no quarto e as paredes estavam de pé. Porque é assim que as paredes são. Estava comendo as sobras da ceia de natal quando fora interrompido.
Era uma casa inteira, meu deus, talvez uma família inteira, barranco deslizado abaixo. Calado, interrompido, ele viu.
Era uma casa inteira, talvez uma família inteira, barranco deslizado abaixo um dia depois do natal. Mas a sensação interrompida do rapaz não tinha nada a ver com Jesus ou com fim do ano, tampouco com renascimento, ou essas coisas de bíblia. Ele queria que tivesse, mas estava interrompido, suco gástrico à boca.
Não está decretada a possibilidade de ser descartada a situação de emergência no município.
O rapaz calado lembrou-se de um acalanto que aprendeu com um velho besta. Um, do qual ele tinha medo. Mas que de alguma forma o acalmava. O acalanto do velho besta falava de uma velha sábia, que, numa praia, empilhava cabeças de ursos num tronco, cozinhando-os a noite toda. Seguia dizendo que no raiar do sol, cegando os olhos no reflexo do mar, a carne preparada deveria ser comida, garantindo força e renovação aos meninos.
Não está descartada a emergência de sermos situados.
Com uma casa desabada vista da janela sob um mar de terra, o rapaz calado, dentro do quarto com suas sólidas paredes, cantarolou o acalanto aprendido de um velho besta, teve muito medo e se acalmou.
Felipe Moratori é dramaturgo, ator, diretor, professor, mestrando em artes cênicas e coordenador da Cia. Sala de Giz. Publicou “Cordas cor de ais” (Funalfa Edições, 2015) e “Duas peças” (Giostri, 2016). Nasceu, vive e trabalha em Juiz de Fora.