Violência sexual é realidade no mundo acadêmico


Por DANIELA ARBEX

10/04/2016 às 07h00- Atualizada 11/04/2016 às 13h52

Coletivo Artemísia recebe queixas frequentes de  violência e abuso contra alunas e se mobiliza Fernando Priamo/04-04-16)

Coletivo Artemísia recebe queixas frequentes de violência e abuso contra alunas e se mobiliza Fernando Priamo/04-04-16)

Aviolência sexual no meio universitário é um dos crimes mais silenciados da sociedade. A falta de números relacionados aos abusos e estupros ocorridos, principalmente, em festas promovidas por alunos das faculdades da UFJF e de instituições particulares contribui para manter os casos no anonimato, mas a recorrência de episódios tem pressionado as universidades a adotar medidas de escuta e acolhimento das vítimas. Por medo, a maioria das jovens não denuncia e, mesmo quando elas procuram o serviço de saúde do município preferem, descaracterizar a violência, a fim de não serem expostas. Há mais de um ano, uma universitária da cidade estuprada após ser dopada em uma festa pelos colegas de turma – ela se lembra de mais de um autor – deu entrada no HPS, onde funciona o Protocolo de Atendimento ao Risco Biológico, Ocupacional e Sexual (Parbos). No entanto, ao invés de dar queixa por estupro coletivo, a estudante pediu que o caso fosse registrado como sexo desprotegido. Pesquisa realizada em 2015 pelo Instituto Avon/Data popular com 1.823 alunos de graduação e pós-graduação do país confirma a gravidade do problema. Embora 67% das acadêmicas tenham alegado já ter sofrido algum tipo de violência nas dependências de instituições de ensino superior na qual estudam ou em festas acadêmicas, só 4% admitiram ter formalizado denúncia.

chein Segundo o Artemísia – coletivo feminista do Instituto de Artes e Design da UFJF -, a “culpabilização” das vítimas e a falta de medidas contra o agressor são fatores que impedem a formalização da denúncia. “Muitas vezes, o seu depoimento é colocado em xeque e vão te perguntar: com que roupa você estava? Sempre terá a dúvida pairando sobre quem denuncia. A menina tem medo de ser lembrada e taxada como aquela que foi estuprada, a que facilitou o estupro. Embora seja um absurdo, muitas pessoas acreditam que foi a vítima quem instigou a violência sexual. Isso acua muito as meninas. O medo é maior no meio universitário, porque a gente sabe que, dentro da instituição, é muito difícil que seja feita qualquer coisa”, comenta Ana Paula Vieira, 21 anos.

A mestranda em Literatura da UFJF, Isadora de Araújo Pontes, do coletivo Maria Maria- Mulheres em Movimento, lembra que a universidade também é um espaço de produção do machismo. “Mesmo na universidade, a mulher continua sujeita ao machismo. As relações de poder estão presentes o tempo todo na nossa sociedade. Então, apesar de se estar no meio intelectual, continua existindo todo um processo internalizado de opressão, de silenciamento por ser mulher. É uma ilusão achar que não há machismo no meio intelectual. Tudo é violência, só que algumas são mais traumáticas. Quando um aluno não é responsabilizado por um estupro, está sendo formado um professor estuprador, um profissional estuprador. Se um homem fala que não fez alguma coisa, todo mundo acredita. Se uma mulher fala, eles não acreditam nela. Sempre perguntam: Você tem certeza que foi estupro?”

Ana Cláudia Esteves Pereira Bastos, coordenadora do Parbos – serviço de saúde do município referência para a macrorregião de Juiz de Fora, que desde 2005 acolhe e atende vítimas de violência sexual -, acredita que a subnotificação seja uma realidade no meio universitário. “Quando acontece uma violação dessas, a vítima volta ao primitivo, mesmo com todo conhecimento que se recebe, todas as pesquisas, todos os discursos. É a necessidade de talvez existir, persistir e sobreviver na sociedade que a gente tem. Porque a nossa sociedade é cruel. A mesma sociedade que aplaude a moça que denuncia o agressor é a que vai julgá-la pela roupa, pelo horário, pelo local ou pelas companhias. Aí ela é exposta no seu meio e na sua instituição. Então, eu entendo esse medo. No entanto, toda vítima acima de 18 anos que chega no serviço, independentemente do sexo, solicitando atendimento de saúde, a gente fala: vamos fazer a denúncia? Tem certeza que está sendo correta com você mesma? Você está deixando um estuprador solto. Essa pessoa tem nas mãos a oportunidade de impedir que outra mulher também seja vítima.”

‘Problema é muito mais grave do que imaginava’

2Carolina Bezerra, que respondeu até a última semana pela Diretoria de Ações Afirmativas da UFJF e uma das responsáveis pela campanha “A universidade é pública o meu corpo não”, afirma que, após realizar a Semana da Mulher, ocorrida mês passado na instituição, percebeu que “o problema da violência na universidade é muito mais grave do que imaginava”.

“Eu pensei na realização da Semana da Mulher, porque, há alguns meses, começaram a chegar de maneira informal denúncias de assédio e violência pelas alunas, uma questão muito delicada em função do medo que elas sentem. Imagina chegar no diretor da sua unidade, no coordenador do seu curso, na diretoria de ações afirmativas da universidade e falar: estou sofrendo isso. Na verdade, acontece em todo o planeta, em todas as universidades de todos os países, só que estamos nos capacitando para saber como lidar e tratar essas questões. Tocar nessa questão é tocar na família brasileira, porque a violência contra a mulher no ambiente acadêmico é um reflexo da violência contra a mulher em todos os espaços da sociedade”, diz Carolina.

Marcos Chein, que respondia como reitor também até a última semana, admite a existência do problema no universo acadêmico e diz que o silenciamento dificulta a adoção de medidas. “O medo da vítima é um dos maiores componentes que temos na UFJF hoje. Medo de que isso comprometa a sua carreira, que crie retaliações mais imediatas. Legalmente, não se pode abrir processos administrativos sem uma denúncia formal. Então, o primeiro desafio é criar um ambiente para que essas vítimas possam se sentir acolhidas e protegidas para saírem do silêncio. Como romper o silêncio? Esse é um grande desafio.”

Já a presidente do Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Minas Gerais, Anna Gilda Dianin, diz que a questão não está presente nas instituições superiores de ensino em função do perfil do aluno e do controle maior de acesso aos espaços, diferente das universidades. “O estudante de graduação da instituição superior de ensino, tanto pública, quanto privada, é o aluno que trabalha ou que está buscando emprego. Não se vê essa quantidade de festas nos cursos de instituições isoladas de ensino. O perfil institucional é completamente diferente de uma universidade.”

Ofensas de gênero afastam estudante da sala de aula

A violência contra mulheres no ambiente universitário envolve também a relação aluno/professor. Esta semana, uma estudante da UFJF que prefere ter seu nome e curso mantidos em sigilo cancelou a matrícula em uma disciplina após ouvir do docente ofensas de gênero. “No primeiro dia de aula, ele deixou muito claro que mulher tatuada era puta, que a que usa roupa curta era vagabunda e tinha mais que ser passada a mão e estuprada. É um discurso muito desconexo para uma universidade pública, o qual te deixa moralmente violada. Além disso, a gente tem o professor como um referencial intelectual, acadêmico e, no momento em que ele passa do limite profissional, nós não sabemos como reagir”, lamenta a universitária.

O assédio sexual de professores junto a alunas também veio à tona, recentemente, quando cinco docentes tiveram seus nomes apontados por jovens que estudam na UFJF em depoimentos que mencionam cobranças de favores sexuais. Quem confirma é Carolina Bezerra, que respondia pela Diretoria de Ações Afirmativas até a última semana, embora em nenhum destes casos tenha havido formalização das denúncias.

3“Existe nas universidades todo um contexto que impede, dificulta (a denúncia) e que expõe a vítima. O assédio de professores com alunas que relatam a troca de favores sexuais chegou até mim, inclusive mestrandas relataram cobrança de pedágio, ou seja, a manutenção de relações sexuais para poder defender o mestrado. Cerca de cinco professores foram acusados. Essa violência é muito pior, porque tem uma relação de poder, hierárquica e intelectual”, destaca Carolina, que, em função da gravidade dos relatos, procurou abrir um canal de comunicação com os alunos por meio da disponibilização de e-mail e telefones da Diretoria de Ações Afirmativas.

Uma das ideias defendidas por ela é a criação de espaços de acolhida dessas vítimas. “As pesquisadoras que têm trabalhado com a temática da violência dizem que a primeira questão é a escuta. Nós temos que aprender a ouvir, porque, quando essa jovem, essa aluna, tem coragem de chegar até a gente para falar, ela já teve que romper várias questões. Agora a gente vai receber essas denúncias e não vai fazer nada? Isso vai ser uma dupla violência. Por isso, a diretoria quer investir em grupos de sororidade, na criação de um espaço de acolhida desse feminino fragilizado, ferido, no sentido da criação de solidariedade e de redes, nas quais ela possa se sentir à vontade para colocar todas essas questões que podem ter implicações diretamente relacionadas ao desempenho acadêmico dessa aluna, ao desempenho intelectual e a toda sua capacidade de produção.”

4Marcos Chein, que deixou o cargo de vice-reitor na sexta-feira, acredita que a única forma de conseguir segurança no campus não é com mais policiamento e sim através de um longo trabalho de educação. “Hoje a universidade tomou um primeiro passo, que é admitir que o problema existe e que ela não vai colocar isso para debaixo do tapete. E esse era o meu papel como gestor: apoiar e dizer que essa é uma política da universidade contra o machismo, o racismo, a homofobia, mesmo sabendo que essas políticas não são aceitas facilmente. A questão da mulher no campus é muito sensível. Não é possível que, no meio acadêmico, onde as pessoas são tão bem informadas, elas sejam tão fragilizadas. O grande desafio daqui para frente é aprofundar esse diagnósitco e construir políticas, além de uma rede de segurança, de escuta qualificada das minorias. Se não começar aqui dentro, como vamos levar essa discussão para fora? Precisamos dar o exemplo, pois o pior tipo de preconceito é fingir que não tem. Venho do direito e não acredito na correção pela punição. Uma sociedade não evoluiu porque aplica no sujeito uma penalidade, ela evolui a partir do momento em que as pessoas são educadas e culturalmente distinguem o certo do errado, aprendendo a respeitar as pessoas na sua individualidade. A grande pergunta é essa? Como evitar esse tipo de comportamento violento? Eu acho que é cada vez mais trazendo à tona esses temas para a discussão, através de ações educativas.”

Carolina Bezerra endossa e diz que é preciso investir, de forma urgente, na formação de estudantes e docentes em todos os aspectos que envolvem os direitos humanos.

Coletivo reage com campanha: Deixa ela em paz

No final do ano passado, estudantes do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF usaram o celular para fotografar por baixo da saia das meninas enquanto elas subiam as escadas. As fotos foram compartilhadas em grupos de WhatsApp durante dias com classificação de cada jovem: “essa é para namorar”, “essa é para transar”, “essa é pra ficar”, escreveram dois alunos apontados como responsáveis pelos posts.

A atitude deles levou o coletivo Artemísia a realizar uma campanha a partir da colagem de cartazes no corrimão da escada e nos banheiros masculinos com os dizeres: “Deixa ela em paz”. Envergonhados, publicamente, os autores recuaram. Segundo Déborah Bellotti Lanna, que integra os coletivos Maria Maria e Artemísia, as vítimas foram encorajadas a prosseguir com um processo, o que não foi adiante. Até hoje, nenhum dos rapazes foi responsabilizado.

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