Uma fachada perdida na paisagem
Nem mesmo a publicação de decreto de tombamento, em julho de 2003, garantiu a perfeita conservação da arquibancada do Clube Hípico Campestre de Juiz de Fora. Instalada na Avenida Juscelino Kubitschek, no Bairro Jóquei Clube, a construção em estilo neocolonial com ornamentação realçada por laços de fitas, guirlandas confeccionadas em argamassa e frontão ondulado, coroado por pináculos, deteriora-se a cada ano. A imponência da arquitetura do início do século XX, que justificava a preservação, aos poucos, não mais deixa vestígios. Há duas semanas, a Tribuna teve acesso ao processo acondicionado no Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural de Juiz de Fora (Comppac) desde 1997. Ao que parece, se o cenário não se alterar, o prédio, entre tantos outros imóveis da cidade resguardados pela sua importância histórica, continuará clamando por intervenções urgentes (ver quadro na página 5).
Mesmo sem ter acesso ao local, é possível perceber as marcas de abandono. Da Avenida JK, constata-se que a cobertura não existe mais, a pintura está desgastada, há rachaduras e trincas por todos os lados, vidros das janelas quebrados, madeiras expostas ao sol, entre inúmeras outras irregularidades. Em vários momentos, o Conselho Municipal registra as péssimas condições do edifício.
“Segundo o diretor da Divisão de Patrimônio Cultural (Dipac), o bem tombado continua no mesmo estado de conservação de dezembro de 2012 e com uma caixa d’água sobre os degraus da arquibancada, o que não pode ocorrer”, diz o ofício enviado, em 8 de abril de 2013, ao Atacadão Distribuição, Comércio e Indústria Ltda., proprietário do terreno onde está localizada a arquibancada. Em janeiro de 2014, mais um documento mostra o péssimo estado de conservação. “Valemo-nos do presente para notificar vossa senhoria para que execute a restauração da Arquibancada do Antigo Clube Hípico e Campestre. (…). O Bem tombado está abandonado, em ruínas e totalmente destelhado.”
Por meio de nota, a assessoria de imprensa da Funalfa informou que diversas notificações foram encaminhadas aos proprietários cobrando as providências cabíveis, sendo a mais recente de 12 de janeiro de 2016. “Lembramos que a manutenção da estrutura é de responsabilidade dos mesmos que estão, por indicação legal, sujeitos a multas em caso de descumprimento por omissão”, diz a intimação.
Tentativas de restauração
Evidenciando uma tentativa de dar um fim à situação que se arrasta, em 2012, os responsáveis pelo patrimônio apresentaram ao Comppac um projeto de recuperação para a arquibancada. Segundo a Funalfa, a proposta, aprovada em dezembro do mesmo ano, é de autoria da arquiteta e urbanista Larissa Ribeiro de Moura e já deveria ter sido executada. “O estado de conservação do bem é regular, certas intervenções descaracterizam sua tipologia original como o uso de esquadrias de alumínio na fachada leste (interna) e a construção de um anexo. Atualmente, o bem está temporariamente em uso como escritório de obras para a construção do mercado atacadista no terreno onde o mesmo está implantado, para isso, muitas instalações elétricas e hidráulicas estão aparentes e sem planejamento, mas o projeto em questão de iniciativa do Atacadão visa a reabilitar o imóvel”, garantia o diagnóstico feito à época pela arquiteta com base nos levantamentos fotográficos e arquitetônicos realizados durante o estudo.
Além de uma nova pintura para a fachada, o projeto prevê soluções para o entorno, conforme comunicado anexado à documentação em 14 de dezembro de 2012. “Temos a definição do tratamento do piso a ser dado ao entorno em todo o perímetro de proteção, onde será feita uma recuperação do piso cimentado já existente no passeio imediato, e a opção do uso de vegetação arbustiva, manutenção do gramado e mantimento das palmeiras na fachada de fundos, assim como das árvores nas laterais do imóvel.”
Em resposta aos vários questionamentos enviados pela Tribuna, também na semana passada, a assessoria de imprensa do Grupo Carrefour, do qual faz parte o Atacadão, disse que “a companhia informa que o processo relacionado à restauração do imóvel em questão tramita na Secretaria de Meio Ambiente (SMA) da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora”. Conforme a assessoria de comunicação da SMA, no entanto, o único processo que corre na pasta é o de licenciamento ambiental do supermercado Atacadão: “A empresa já apresentou a documentação necessária, que está para análise e vai ser apresentada no Conselho Municipal de Meio Ambiente”.
Tempos de competição
Para a nova geração que transita diariamente em frente ao que sobrou do Clube Hípico Campestre, parece não haver justificativa em se manter de pé aquele paredão de concreto, perdido ao lado de um conjunto de apartamentos que se erguem. No entanto, para os estudiosos do assunto, o bem merece o reconhecimento pela memória que guarda. “Houve um período de ouro da Hípica, nas décadas de 1980 e 1990, quando acontecia a Copa Coca-Cola de Hipismo. Lembro-me que ela era bastante ativa, recebia cavaleiros de todo o Brasil para suas competições. Ouço falar que, depois que a engarrafadora da Coca-Cola foi desativada, o evento enfraqueceu. A partir daí, começou a decadência do clube, que fechou por falta de sócios e pessoal interessado em manter o esporte”, conta o arquiteto e urbanista Rogério Mascarenhas.
Mesmo que tenha vindo para a cidade ainda bem jovem, aos 20 anos, o cavaleiro Rodrigo Sarmento, filho de Guilherme Sarmento, ex-proprietário da Hípica, ainda teve a oportunidade de comandar alguns campeonatos por aqui, como o CSI-W Internacional de Saltos de Juiz de Fora. Realizado em 2007, o evento recebeu nomes como o de César Almeida, uma das grandes estrelas do esporte brasileiro. “Lamentamos muito o fechamento, mas ficou inviável ficar bancando aquela situação. É um esporte caro, que precisa de mais incentivo.” Os laços afetivos que o ligam ao local, a seu ver, não são razões suficientes para o reconhecimento. “Há vários tombamentos sem fundamento em Juiz de Fora. Não existem justificativas. Tombar um lugar, como o Mariano Procópio, é uma coisa. Agora, tombar o bem de uma pessoa? Aquilo ali é apenas uma fachada.”
Bairro Jóquei Clube
Como pesquisador da transformação urbana de Juiz de Fora, Rogério Mascarenhas discorda de um sistema que acredita em uma preservação do bem sem seu uso efetivo. “Como não existe a possibilidade de ali voltar a existir um clube hípico, aquela arquibancada vai ser algo sem qualquer finalidade, sem qualquer razão de ser. A simples proteção vai fazer com que a imagem daquela paisagem seja apenas um elemento do passado”, assevera o arquiteto, que, ainda assim, defende a preservação. “Nosso processo de tombamento é incipiente, ganhou força nos anos 1980, e acho que existem alguns exageros. Mas sou favorável à manutenção daquela fachada, mesmo que ela não tenha função, porque ela se constitui como um elemento forte da identidade daquela região, que é carente disso. A história da Zona Norte é muito recente. Entre o Centro e Benfica, praticamente não existia nada na primeira metade do século XX. Esse trecho, que hoje está urbanizado, era uma grande área vazia. De uma certa forma, a Hípica é uma âncora de ligação daquela região com o passado.”
Ao pôr os olhos, diariamente, sobre o monumento, o morador de Benfica e estudioso da história local Vanderlei Tomaz se entristece com o avançado grau de deterioração. Seu sonho é acreditar que, um dia, aquele patrimônio será testemunha de um presente glorioso. “Temos entre Francisco Bernardino e Barbosa Lage três bens tombados, que são a Estação Ferroviária, de Bernardino, por sinal bem preservada pela MRS, a Fazenda Ribeirão das Rosas e a fachada da Hípica. Para nossa tristeza, estas duas últimas estão num estado tão ruim que podem vir a tombar literalmente. Elogio a ação do Exército que fez, recentemente, uma proteção especial com uma cobertura em toda a fazenda, o que garante sua sobrevida. Anseio por uma atitude igual por parte dos proprietários da fachada da antiga Hípica. Sua simples existência justificou a criação do Bairro Jóquei Clube.”