Como foi a gripe espanhola, que matou mais de 500 em JF
O que sabemos sobre a última grande epidemia que assolou o país em 1918? Cronistas e memorialistas registraram o caos que se instalou em Juiz de Fora
Inspetor da fiscalização da Prefeitura de Juiz de Fora, Teodomiro Gumercindo de Campos foi à imprensa informar que entre 23 de outubro e 3 de dezembro de 1918, 556 morreram na cidade. Dessas, 499 pessoas foram enterradas no Cemitério Municipal e 57, no Cemitério da Glória. Do total, 423 foram vitimadas pela gripe espanhola, o que representa 76% dos óbitos. O relato consta no livro “Efemérides juiz-foranas: 1698-1965”, do jornalista Paulino de Oliveira, um dos principais historiadores da cidade, morto aos 93 anos, em 1992. Na publicação, no entanto, não há referência aos sepultamentos realizados no cemitério de Grama, São Pedro e Barreira do Triunfo, o que leva a conjecturar um número muito maior de vítimas daquela que foi a última grande pandemia enfrentada pelo Brasil até a chegada do coronavírus, que há poucos meses desestabiliza o mundo e, mais recentemente, aterroriza os brasileiros com sua rápida disseminação.
O período demarcado pelas informações de Teodomiro Gumercindo de Campos foi o mais letal da doença, sobre a qual o memorialista juiz-forano Pedro Nava foi um dos principais autores a registrar. Em “Chão de ferro”, terceiro volume de suas memórias, publicado em 1976, Nava dedica parte de seu segundo capítulo a narrar a tragédia que marcou a primeira metade do século XX. “Pois sínoco de catarro, influenza, gripe ou como queiram chamá-la – a espanhola instalou-se entre nós em setembro, cresceu no fim desse mês e nos primeiros do seguinte. No dia 11 de outubro, já era problema tão grave que Carlos Seidl pede ao seu ministro autorização para contratar pessoal extraordinário que permitisse à Saúde Pública funcionar a contento na emergência que se desenhava. Tornou-se calamidade de proporções desconhecidas nos nossos anais epidemiológicos nos dias terríveis da segunda quinzena de outubro e sua morbilidade e mortalidade só baixaram na ainda trágica primeira semana de novembro”, narra o escritor, referindo-se ao então diretor geral de saúde pública Seidl.
O nome, segundo Nava, médico de avolumada erudição, foi cunhado pelo médico francês Sauvages de Lacroix, “tendo em conta o aspeto tenso, contraído, encrespado, amarrotado – grippé – que ele julgou ver na cara de seus doentes”. A dimensão do caos causado pela espanhola Nava diz ter sentido quando, estudando o terceiro ano ginasial no Rio de Janeiro, vivendo na casa de um tio, foi dispensado da aula, após quase a totalidade da turma cair em febre. “Aterrava a velocidade do contágio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas. Nenhuma de nossas calamidades chegara aos pés da moléstia reinante: o terrível já não era o número de causalidades – mas não haver quem fabricasse caixões, quem os levasse ao cemitério, quem abrisse covas e enterrasse os mortos. O espantoso já não era a quantidade de doentes, mas o fato de estarem quase todos doentes e impossibilitados de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva”, escreve o memorialista.
Em seu livro “Badalo do sino”, o jornalista Wilson de Lima Bastos conta que, tal qual o coronavírus nos dias de hoje, a espanhola não fazia distinção social. Levou a vizinha Zizinha Siqueira, “na flor da idade, inteligente, risonha, animadíssima”. Foi fulminante, conta. “A morte de Zizinha abalou a sociedade juizforana, e seus pais, desiludidos, mudaram-se de Juiz de Fora”, registrou Bastos, outro importante historiador que a cidade conheceu no século XX. “A gripe espanhola sucumbiu indivíduos em praticamente todo o Brasil. As áreas rurais de Juiz de Fora funcionavam como portas de entrada das doenças e pestes que impunham o horror de estar próximo da morte. Dessa forma, as ações do Poder Público, da Igreja e das instituições sanitárias visavam soluções imediatistas, porém, nem sempre elas eram satisfatórias”, observa o doutor em ciências da religião Paulo Sérgio Quiossa em sua tese intitulada “O morrer católico no viver em Juiz de Fora: 1850-1950”.
‘Os doutores viviam exaustos’
Como nos dias que correm, muitos eram os boatos ventilados de canto a canto, comenta Pedro Nava em seu “Chão de Ferro”. E também como na atualidade, o escritor narra as tentativas do Poder Público de calar a imprensa que noticiava o crescente número de contaminações. A narrativa, crua e dura, do memorialista juiz-forano parece repetir-se. Como hoje, enquanto a ciência tentava encontrar uma cura para a doença, muitas eram as indicações de produtos sem eficácia comprovada, como o quinino, popular na casa de Nava. Os profissionais de saúde também adoeciam e morriam. “Quando os clínicos não deram mais para o repuxo, entraram em cena os cirurgiões, os parteiros, os laboratoristas – fazendo também de internistas. Os doutores viviam exaustos”, narra ele. Foi um parteiro, inclusive, quem cuidou dos primeiros doentes da casa.
Vindo de Juiz de Fora, o avô parou no Rio de Janeiro para visitar a família, e, em seguida, seguiria em direção ao Ceará. Com o desejo de conhecer o Pão de Açúcar, pediu ao neto Pedro que o levasse ao destino turístico. As ruas estavam vazias, um cenário desolador. Os dois subiram de bonde. Na volta, justamente naquele momento, o jovem Nava quedou-se doente. No dia que se sentiu melhor, pela janela avistou três enterros passarem com poucas pessoas no cortejo. Naquele mesmo dia a prima Nair sentia os primeiros sintomas do mal que lhe arrancou a vida. “O Ernesto e eu fomos amparando tio Ennes até à sala de jantar onde ele desmoronou na sua cadeira de balanço. Olhei para ele. Vi sua face venerável arrasada como se por cima dela tivessem passado várias vidas. Chorava como criança. Senti que ele estava ferido de morte. A banheira das imersões passou arrastada para a copa. As mulheres se trancaram com a defunta. Quando abriram a porta estava tudo arrumado e esticado. Uma vela ardia à cabeceira. Saíra da mala o vestido que devia servir no casamento e vimos deitado o jacente de uma Noiva de mármore.”
O circo que virou hospital
Naquele hoje próximo 1918, Juiz de Fora assistiu um terrível acidente. Durante a noite, a Estrada de Ferro Central do Brasil cedeu justamente em sua porção que ficava sobre o Rio Paraibuna. Muitas pessoas se feriram e algumas morreram. Foi já combalida com a tragédia que a cidade viu chegar a tal gripe espanhola. José Procópio Teixeira era o prefeito naquele momento. Médico, ele percorria hospitais e também escolas, clubes e outros espaços que se transformaram em improvisados ambulatórios. Paulino de Oliveira, em suas memórias, resgata um desses espaços. “Por ocasião da gripe espanhola, em 1918, eu não residia em Rio Novo. Fiquei sabendo, contudo, que não havendo hospital na cidade, foi um circo de cavalinhos que se adaptou para isso. Seu proprietário, Galdino Pinto, arcou com todas as despesas. Sua esposa, dona Clotilde, suas filhas, suas noras, foram enfermeiras carinhosas, verdadeiras Florence Nightingale, auxiliadas por seus filhos Anquises, Abelardo e Raul e por todos os artistas da companhia”, conta ele, comparando as mulheres à famosa enfermeira que tratou dos feridos na Guerra da Crimeia.
Segundo Oliveira, que perdeu a irmã e o cunhado para a gripe espanhola, Galdino Pinto abriu falência logo depois da epidemia e permaneceu em Rio Novo. “Vinte anos depois, em 1946, provavelmente quando já havia falecido o caridoso homem, que Rio Novo jamais esqueceu, o farmacêutico Mário Dias Ladeira, então prefeito daquele município, colocou seu retrato no salão nobre da Prefeitura e por decreto determinou que a Rua 14 de Setembro passasse a denominar-se Rua Galdino Pinto”, relata o jornalista em seu livro de crônicas editado em 2001, pelo selo do BDMG.
‘Pura e simplesmente fome’
Foram muitos os Galdinos da gripe espanhola. A aridez encontrou até mesmo a abastada família de Pedro Nava no Rio de Janeiro. “Posso testemunhar contando o que passei, o que passamos, na casa em que estava – pura e simplesmente fome. Conheci essa companheira pardacenta. Lembro que depois de um dia de pirão de farinha, de outro engambelado com restos de cerveja, vinho, licores e azeite – do alvorecer do terceiro, sem café da manhã nem nada e da saída de um Nestico recém-curado, pálido e barba grande, de um Ennes de Souza cara fechada, chapelão desabado, sem gravata. Ambos dispostos a tudo. Sobraçavam cestas de vime, iam armados de bengalório e ao fim de uma campanha de horas, voltaram. O Ernesto trazia um saco de biscoitos Maria, um pedaço de toucinho e uma latinha de caviar; seu tio, uma dezena de latas de leite condensado. Durante três dias essa foi a alimentação de sãos e doentes”, conta.
O caos que esvaziou as ruas e devastou famílias, nas memórias de Nava, fez irrestrito o desespero, com cenas assustadoras pela miséria que envolveu e que, nos dias de hoje, pode servir como prenúncio ou alerta: “Bem ou mal, como era possível, frescos ou já decompostos, quando os pobres mortos chegavam aos cemitérios não havia gente suficiente para enterrá-los. Era muito defunto para os poucos coveiros do trivial – assim mesmo desfalcados pela doença. Foram contratados amadores a preços vantajosos. Depois vieram os detentos. Espalharam-se então horrores. Descreviam-se os criminosos cortando dedos aos cadáveres, rasgando-lhes as orelhas para roubar os brincos, os anéis, as medalhas e os cordões que tinham sido esquecidos.”
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