Dez mortes e greve de fome expõem superlotação na Ariosvaldo
Sete detentos foram a óbito por supostos enforcamentos com cordas tipo “teresa”, alguns em celas com cerca de 30 pessoas; pelo menos um deles foi assassinado, segundo a Polícia Civil
Dez detentos da Penitenciária Ariosvaldo Campos Pires mortos. Nove deles atrás das grades da unidade. Sete por supostos enforcamentos com cordas artesanais tipo “teresa” em celas lotadas, com cerca de 30 pessoas. Pelo menos um desses foi assassinado por colegas de cárcere, que forjaram seu autoextermínio, segundo investigação da Polícia Civil. Outros casos seguem em apuração e podem revelar outros “suicidados”. Esse é o alarmante saldo de 2023 do equipamento prisional situado no Bairro Linhares, Zona Leste de Juiz de Fora. Destinado aos condenados, o local passou a ser também porta de entrada do sistema há mais de dois anos, desde que o Ceresp precisou ser desativado por problemas estruturais para reforma, transferindo cerca de 800 presos provisórios para outras unidades, entre março e abril de 2021.
Com isso, os problemas na Ariosvaldo foram se acumulando, enquanto homens se amontoam: são mais de mil em um espaço destinado a 401. Além disso, integrantes das duas maiores facções criminosas do país estariam misturados, acirrando atritos, muitas vezes fatais. Uma tentativa de homicídio a tiro, em 28 de abril, no interior da mesma unidade prisional, escancarou as rivalidades internas e o possível descontrole. Na ocasião, um acautelado, 39, foi baleado na perna por outro preso, 28, autuado em flagrante. Ainda não foi explicado como uma arma de fogo foi parar nas mãos de um detento. A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) confirmou mudanças na diretoria após a tentativa de assassinato, mas alegou que as modificações fazem parte da rotina de gestão do Departamento Penitenciário (Depen-MG) e já estavam previstas.
O estopim chegou neste mês de julho, quando ocorreram duas mortes suspeitas em menos de 24 horas, culminando em uma greve de fome na semana passada. A manifestação por melhores condições carcerárias, iniciada na última quarta-feira (26), despertou as autoridades e as entidades ligadas aos direitos humanos sobre o risco de colapso, levando familiares dos internos às portas da Ariosvaldo e da Penitenciária Professor José Edson Cavalieri (Pjec), de regime semiaberto.
Para tentar conter o protesto por meio da greve de fome, que não chegou a 50% de adesão, segundo a Sejusp, cerca de 30 detentos teriam sido transferidos do complexo penitenciário na quinta. A pasta confirma as transferências, como “parte da rotina de gestão prisional”, mas não forneceu detalhes, por razões de segurança. Questionada nos últimos dias sobre o grande número de detentos mortos na Ariosvaldo desde janeiro, a secretaria diz estar “atenta ao dado, mas não pode, ainda, emitir qualquer avaliação até que se tenha clareza das circunstâncias do ocorrido em cada caso”. Conforme a Sejusp, oito óbitos seguem em investigação pela Polícia Civil “por se tratarem, preliminarmente, de mortes decorrentes de autoextermínio”. Os outros dois falecimentos foram esclarecidos como mortes por doenças.
‘É desafiador compreender o suicídio em celas superlotadas’
Na opinião do ex-presidiário, gestor público para o Desenvolvimento Econômico e Social e escritor Samuel Lourenço Filho, é muito desafiador compreender o suicídio em celas superlotadas, sobretudo quando há uso de corda “teresa”, aquela improvisada com lençol ou cobertor. “É inimaginável o senso coletivo não reagir diante de uma tentativa de suicídio. Primeiro, por questões de ajuda: os presos ajudam os outros. Ninguém vai ver e falar: ‘deixa ele morrer, que se dane’. Isso não acontece. Consequentemente, todo mundo vai tentar ampará-lo de alguma forma. Não é porque o preso é bonzinho e não quer que o outro morra. Não é isso, não. É um instinto que impede de levar adiante essa proposta suicida de um outro sujeito dentro da cela.” Além disso, a vivência de Lourenço Filho aponta outra questão: a desconfiança causada. “O coletivo tem dificuldade de deixar que os presos cometam suicídio – por corda, por tudo – porque pode ser investigado, e uma ocorrência dessa sob suspeita pode acarretar em uma eventual investigação entre os pares e possível responsabilização.”
Uma das experiências testemunhadas por Samuel de assassinato em cela, por sufocamento, foi mediante simulação de overdose, fazendo com que, quase na fase final do homicídio, a vítima tivesse drogas inseridas no seu próprio corpo. “Mas o preso também é um bicho ruim e pode colocar o cara para se enforcar. Ou enforca ele antes com uma teresa no chão e depois o pendura para dar aquela cena clássica do suicídio: um banco caído, e um corpo pendurado por uma corda presa no teto. Nunca que o preso vai ter tempo de subir e amarrar uma corda na grade para depois se jogar, como numa cena clássica de filme. Não existe essa dramaturgia no aspecto prisional. É uma realidade: você força o cara a cometer isso.”
Detento foi assassinado e pendurado pelo pescoço para simular suicídio
A morte mais recente na Penitenciária Ariosvaldo Campos Pires foi registrada como autoextermínio no dia 21 de julho. O detento Jhony Roberto da Silva Carlota, de 34 anos, estava em uma cela com outras 22 pessoas. Durante a conferência pela manhã, os demais presos informaram aos policiais penais que ele havia “pulado na teresa”. O homem estava pendurado na janela do banheiro por uma corda artesanal amarrada ao pescoço. Ele havia sido preso três dias antes na operação do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público. Treze mandados de prisão preventiva foram cumpridos, três deles contra policiais militares, sendo dois da ativa e um da reserva. Os investigados são suspeitos de integrarem organização criminosa ligada a lavagem de dinheiro proveniente de tráfico de drogas, agiotagem e extorsão. Paralelamente ao inquérito da Polícia Civil, a Sejusp abriu procedimento de investigação interna para apurar administrativamente o óbito, assim como nos demais casos.
A morte ocorrida 24 horas antes da de Jhony foi do detento Wilson dos Santos Albertino Junior, 28. Da mesma forma, ele foi achado por policiais penais enforcado, pendurado na ventana da cela, durante a conferência matinal, após outros presos gritarem que “alguém havia pulado na corda”. O homem também havia dado entrada no presídio no dia 18, após ser capturado por mandado de prisão, e estava com mais quatro presos no cômodo. Apesar de a ocorrência policial ter sido registrada como autoextermínio, a Polícia Civil, por meio da Delegacia Especializada de Homicídios, apurou, com apoio da Polícia Penal, que dois detentos, de 23 anos e 24 anos, ambos com passagem por tráfico de drogas e homicídio, mataram a vítima e depois a penduraram pelo pescoço para simular suicídio. “Os suspeitos foram presos em flagrante e, além do crimes que já respondem, também vão responder por homicídio qualificado”, destacou a instituição, que apontou como motivo “briga entre grupos rivais pelo tráfico de drogas”.
Dos outros cinco supostos enforcamentos registrados na Ariosvaldo neste ano, inicialmente como autoextermínio, apenas um foi confirmado como suicídio pela Polícia Civil e arquivado: Wallas Vicente de Paulo da Silva, 25, foi achado morto no dia 9 de janeiro. Os demais quatro casos seguem em investigação. Entre eles está o de Romário Venâncio Moreira, 28, também suspenso por corda no interior da cela, no dia 2 de janeiro, há quase sete meses. Já em 24 de março, Luipe Furtado Mendes, 29, também foi achado amarrado à ventana do cárcere, onde estavam mais 26 presos. Em 13 de abril, Carlos Alberto Fortino da Silva, 41, morreu de maneira semelhante na cela onde estavam outros 37 presidiários. Em 27 de maio, foi a vez de Genilson Moreira de Souza, 24, ser encontrado atado pelo pescoço à “teresa”, em espaço onde estavam quase 40 acautelados.
Os outros três falecimentos de presos da Ariosvaldo este ano aconteceram de maneiras diferentes. A Polícia Civil arquivou, por não existência de crime, a morte de Luiz André de Oliveira, 35, no dia 22 de maio. Conforme a Sejusp, ele faleceu após um período de 15 dias de internação hospitalar, devido a uma sepse pulmonar advinda de deficiência imunológica adquirida (HIV).
Já no dia 5 de maio, policiais penais foram chamados por colegas de cárcere de Robson Douglas Teodoro do Carmo, 25, informando que ele estava passando mal. O preso foi retirado da cela, porém já sem os sinais vitais. O Samu foi acionado, e os profissionais constataram o óbito. Dez dias antes, em 25 de abril, André de Araújo Oliveira Pinto, 43, passou mal, foi levado para primeiros socorros no núcleo de saúde, mas não resistiu. “Os demais casos ainda estão em apuração. A PCMG irá se manifestar, tão logo os inquéritos sejam concluídos”, reforçou a instituição, por meio da assessoria.
Sem marcas
Uma ocorrência de lesão corporal na Ariosvaldo no dia 15 de abril pode dar uma ideia do que se passa atrás das grades. Naquele dia, após denúncia de agressão, um preso, 33, foi achado por policiais penais no banheiro, se limpando. Ao ser questionado, ele confirmou ter sido agredido com “muitos pisões e pontapés” pelos companheiros e acrescentou terem usado uma coberta para tentar não deixar marcas. A vítima não apresentava lesões aparentes mas alegava dores “na região das costelas” e dificuldade para respirar. Ele estava na cela de triagem com outros 49 presos e não apontou suspeitos. Outros casos de agressão na mesma unidade prisional também já foram registrados este ano.
Para o ex-presidiário e escritor Samuel Lourenço Filho, se o problema é de fato suicídio, é preciso haver atividade lúdica dentro da prisão, incentivo a outras tarefas, como criação de cinedebates, ampliação do acesso à escola e atividades de terapia ocupacional. “A secretaria precisa abrir suas possibilidades de administração prisional e ofertar outras atividades terapêuticas, educacionais e recreativas para reduzir esses suicídios. Do contrário, precisa assumir que há um conflito interno, em que presos estão matando presos. O suicídio forjado é uma característica tanto dos presos quanto da própria administração. Nunca se investiga o histórico da pessoa que morreu, porque ela já está presa.”
‘Não houve triagem para separar presos’, denuncia sindicato
Diretor regional do Sindicato dos Policiais Penais (Sindppen), Luciano Pipa Lins afirma que a situação das mortes na Ariosvaldo afeta diretamente a saúde mental da categoria. O tema foi tratado em reportagem da Tribuna este ano. Segundo ele, é muito importante que, diante dos problemas estruturais no sistema prisional, os trabalhos sejam baseados nos princípios constitucionais da Administração Pública, em respeito à dignidade da pessoa humana. Ele denuncia constante “desvalorização da tropa”: “Estamos desmotivados pela falta de segurança e de ações estratégicas”.
De acordo com Pipa, com a desativação do Ceresp, a superlotação na Ariosvaldo chegou a três vezes sua capacidade. “Não houve triagem para separar presos por crimes sexuais e facções criminosas rivais, para poder conter qualquer desordem e ter melhor controle.” Além disso, faltam servidores para ações mais criteriosas. “Depois dessas mortes, deram uma equilibrada para tentar reverter esses problemas. Desde a nova gestão, há cerca de dois meses, estão procurando melhorar o ânimo da tropa, a atenção com os internos. Mas nós servidores temos a noção de que ali é um pavio de pólvora. A cadeia está abandonada e corre sérios riscos de acontecer uma tragédia. Há rachaduras, vazamentos, não está suportando essa superlotação.”
Conforme o sindicalista, como a Ariosvaldo é considerada de média para alta segurança, por abrigar originalmente presos condenados, o ambiente é mais confinado. “Misturou muito preso e, possivelmente, alguma facção, que acarretou essa crise.”
Hino de facção é cantado todos os dias na cadeia
No dia 25 de maio, a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania (CDHC) da Subseção da OAB de Juiz de Fora encaminhou ofício ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, ao Governo estadual e a outros órgãos pertinentes informando terem constatado várias violações aos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade e também dos policiais penais que prestam serviço na Penitenciária Ariosvaldo Campos Pires. Após várias denúncias, a visita da entidade nos pavilhões I, II, III e IV da unidade prisional aconteceu no dia 28 de abril a convite da Promotoria Especializada em Direitos Humanos, que também acompanha a situação. Na ocasião, a Ariosvaldo abrigava 1.071 presos, sendo 816 provisórios e apenas 260 condenados em seus quatro pavilhões. As constantes faltas de água no presídio também foram destacadas, como já publicado pela Tribuna.
“Em virtude dessa situação que tem se agravado sobremaneira, a CDHC da OAB/Subseção de Juiz de Fora entende que providências urgentes e pontuais devem ser tomadas em relação às violações dos direitos humanos nas unidades prisionais de Juiz de Fora”, diz o documento. “Alguma coisa precisa ser feita. O problema que estamos enfrentando também está relacionado a facções. Cada caso é um caso, mas como pode morrer com corda em cela com cerca de 30 dentro?”, questiona a presidente da comissão da OAB, Cristina Guerra. “A ideia é a transferência de presos para outras unidades para separar e conter.”
No relatório da visita, foi destacada a situação: “Nos últimos meses, os militantes da advocacia penal estão se deparando com a entrada de organizações criminosas na cidade. Há várias notícias de mortes, bem como rixas dentro das unidades prisionais. Inclusive com ‘oração’, ‘hino’ ou seja lá que nome tenha, de organização criminosa sendo cantado todos os dias, às 18h e às 22h.” A presença de arma de fogo encontrada na mesma data da visita na unidade também foi atribuída às facções. “Isso nunca aconteceu! Somente após essas organizações chegarem à cidade.”
Sobre os falecimentos no interior da unidade, a OAB destaca: “Não há explicação suficiente para os familiares, que têm que se contentar com a certidão de óbito de seus entes queridos, sem qualquer informação sobre a morte.” No dia 4 de maio o assunto também foi discutido em audiência pública na Câmara Municipal, quando foram tratados temas como “comida de péssima qualidade, superlotação, baixo número de servidores, dificuldade de ressocialização, além de problemas com visitas e horários e questões de saúde”. O encontro foi a pedido da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Câmara. “O acesso precário à saúde primária e urgência e emergência é algo grave. A comida estragada, mofada, alimenta os encarcerados e os agentes. Celas para 12 pessoas hoje comportam 40”, relatou na oportunidade a presidente da comissão, vereadora Tallia Sobral (Psol).
Greve de fome
Na última quinta, quando estourou a greve de fome iniciada pelos detentos na quarta, a vereadora destacou que a situação das penitenciárias de Juiz de Fora “está insustentável”. “Relatos de maus-tratos, péssimo atendimento aos familiares, contingenciamento de água, superlotação, falta de funcionários, alimentação estragada e problemas na assistência à saúde são apenas alguns exemplos. Somente nesse ano, oito óbitos aconteceram dentro dos muros da penitenciária. Precisamos de um sistema mais transparente, que permita a atuação dos defensores dos direitos humanos e que amplie a perspectiva de projetos de ressocialização.” Para ela, a situação da greve é alarmante: “O sistema já está em colapso”.
Vários requerimentos também já foram encaminhados pela Assembleia Legislativa (ALMG) cobrando providências ao Governo estadual para melhorias das condições carcerárias em Juiz de Fora.
Governo diz que superlotação é realidade no país
Em nota, a Sejusp confirma que a Ariosvaldo, assim como outras unidades da cidade, opera com lotação acima da capacidade. “Esta realidade pertence não apenas ao município, mas a todo país.” A pasta ressalta que o Ceresp deverá ser reativado com o fim das obras. A previsão inicial é para o fim deste ano. “A Sejusp também trabalha para a abertura de novas vagas em todo o estado, que devem impactar a cidade, em razão de o sistema prisional trabalhar em rede. Somente neste ano, serão entregues 950 novas vagas – 612 já inauguradas em Itajubá e Divinópolis e outras 338 serão entregues em breve em Ubá. Há, ainda, outras unidades em ampliação e construção como o Presídio de Lavras, com 600 vagas, e o anexo de Iturama, com outras 600.”
Sobre os trabalhos realizados para a saúde mental das pessoas privadas de liberdade, a Sejusp assegura que as unidades de Juiz de Fora possuem atividades de trabalho, estudo, remição por leitura, atividades religiosas, atendimento social, entre outras ações, “a fim de garantir uma custódia dentro das premissas da Lei de Execuções Penais (LEP)”.