Ministério Público ingressa com ação para garantir liberdade de aprendizagem em JF
Ministério Público considera que serviço de controle político-ideológico da atividade docente é ilegal
O Ministério Público de Minas Gerais ajuizou, na última segunda-feira, ação civil pública que visa a garantir o direito dos estudantes de escolas públicas e particulares de Juiz de Fora à educação segundo os princípios constitucionais da liberdade de aprender e de ensinar e do pluralismo de ideias. Reportagem da Tribuna, divulgada no último dia 31, mostrou a criação de um grupo no WhatsApp que estimulava a denúncia de “professores doutrinadores”. O Ministério Público considerou que o serviço de controle político-ideológico da atividade docente é ilegal. Na ação assinada por Samyra Ribeiro Namen, titular da 10ª Promotoria de Justiça de Juiz de Fora, Daniela Yokoyama, coordenadora Estadual de Defesa da Educação, e Christianne Cotrim, coordenadora Estadual de Combate aos Crimes Cibernéticos, as promotoras alertam para as violações das garantias jurídico-constitucionais da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” e lembram os prejuízos que o incentivo à desconfiança do professor causam ao desenvolvimento regular das atividades escolares. Elas também ressaltam que o uso de aparelhos eletrônicos em sala de aula, ressalvando apenas as atividades com fins pedagógicos, descumpre a Lei Estadual nº. 14.486/2002.
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As promotoras de Justiça requereram, entre outras medidas, que o juiz da Vara da Infância e Juventude de Juiz de Fora determine, de modo urgente, que o diretor do movimento Direita JF, uma integrante do movimento Direita Minas Juiz de Fora e uma terceira pessoa citada se abstenham de manter qualquer modalidade de serviço formal ou informal de controle ideológico das atividades dos professores e alunos das escolas públicas e privadas de Juiz de Fora. Também foi formulado pedido de tutela antecipada, pleiteando a expedição de ordem da Justiça para que publicações feitas por essas três pessoas sejam retiradas da internet.
De acordo com a ação, na segunda-feira, 29 de outubro, um dia depois do segundo turno das eleições presidenciais, esse grupo divulgou, em contas nas redes sociais, um canal telefônico e de mensagens digitais de comunicação, sem qualquer amparo legal, estimulando os estudantes a enviarem vídeos das aulas de pretensos “professores doutrinadores.” As promotoras de Justiça sustentam que os três implantaram um “canal ilegal de recebimento de delações informais, anônimas, objetivando impor um regime de medo nas salas de aula, o que não é permitido pela Constituição”, uma vez que as crianças e adolescentes devem ser colocados a salvo de toda forma de exploração, crueldade e opressão, e o direito à crítica pode e deve ser exercido na escola, sem cerceamentos de opiniões políticas ou filosóficas.
Ainda segundo a ação, a conduta dos três moradores de Juiz de Fora viola as garantias jurídico-constitucionais da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, gerando “prejuízos indiscutíveis ao desenvolvimento regular das atividades escolares, quer pelo incentivo à desconfiança dos professores, quer pela incitação dos alunos ao descumprimento da lei estadual que proíbe o uso de aparelhos eletrônicos em sala de aula.
No caso de faltas disciplinares de docentes, o Ministério Público esclarece que cabe às secretarias de Educação e ouvidorias públicas, como órgãos centrais dos sistemas de educação, receber denúncias dos interessados e apurá-las na forma da lei, respeitados os direitos à ampla defesa e ao devido processo legal, sem prejuízo de outras providências extrajudiciais e judiciais cabíveis.
Procurado pela Tribuna, o diretor do Direita JF, citado na ação do Ministério Público, disse que não “tinha nenhum assunto para tratar com a Tribuna”. Já as ligações feitas para os telefones celulares das outras duas mulheres citadas não foram atendidas.
Danos morais coletivos
Na ação civil pública, as promotoras também requerem que, ao final do processo, sejam confirmados os pedidos liminares e que os responsáveis pela publicação sejam condenados por danos morais coletivos, em montante calculado com base no número de seus seguidores no Facebook, em virtude do potencial de compartilhamento de cada seguidor, valor este a ser destinado ao Fundo para Infância e Adolescência. “A autoridade do professor precisa ser legitimada e a autonomia pedagógica das escolas mantidas, porque esses são princípios constitucionais”, defendeu a promotora Daniela Yokoyama, coordenadora Estadual de Defesa da Educação. Ela disse, ainda, que esse assunto já está judicializado e respaldado pelo voto do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, na ação direta de inconstitucionalidade número 5537 e 5580. Daniela refere-se às ações propostas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (Contee) contra o Estado de Alagoas e a criação do programa Escola Livre que veda condutas por parte do corpo docente e da administração escolar que imponham aos alunos opiniões político-partidárias, religiosas ou filosóficas.
Em seu voto, contrário ao Estado de Alagoas, Barroso é contundente: “a imposição da neutralidade – se fosse verdadeiramente possível – impediria a afirmação de diferentes ideias e concepções políticas ou ideológicas sobre um mesmo fenômeno em sala de aula. A exigência de neutralidade política e ideológica implica, ademais, a não tolerância de diferentes visões de mundo, ideologias e perspectivas políticas em sala.”
Professores querem que rotina volte ao normal em sala de aula
Para a coordenadora do Sindicato dos Professores de Juiz de Fora (Sinpro JF), Cida Oliveira, a ação do Ministério Público vem confirmar que é dado ao professor o direito de liberdade de cátedra. “O MP afirma que esse tipo de iniciativa viola a Constituição, que é justamente o que Sinpro vem afirmando. Além disso, a atitude desse grupo que incentiva as denúncias estimula a hostilidade dentro de sala de aula, gerando um clima de desconfiança de professores. Isso se configura como assédio moral contra os educadores que se sentem ameaçados pela exposição de seus pensamentos e na sua liberdade de trabalhar com seus alunos”, avalia Cida.
A sindicalista enfatiza que, hoje, a grande preocupação deveria ser com a precarização do trabalho e com a desvalorização que vem sendo percebida na atividade profissional. “Estamos entendendo que foi uma medida positiva a do Ministério Público e esperamos que as pessoas voltem à sua vida normal, pois é necessário essa normalidade. Não é possível que, neste cenário em que vivemos hoje, o professor tenha que entrar em sala de aula na condição de estar vigiado.
Existe uma lei que proíbe o uso de celular em sala de aula. Então, quando há o estimulo a essas gravações e filmagens, estimula-se o descumprimento dessa legislação”, alerta a coordenadora do Sinpro, que acrescenta: “Acho que essas pessoas deveriam fazer um teste e acompanhar o professor, que sai às 6h30 de casa e, normalmente, vai trabalhar numa escola no período da manhã, almoça pelo caminho, e vai para outra escola. Essa rotina, sim, deveria ser filmada”.
A diretora do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-UTE), Victoria Mello, afirma que vê com indignação as tentativas de intimidação por parte de parlamentares e de declarações do presidente eleito acerca dessas ameaças contra os educadores. “É uma interferência absurda na condição do professor enquanto trabalhador. Consideramos uma afronta, uma vez que a Constituição Federal garante a liberdade de expressão a todos os cidadãos e a todas as cidadãs. Também é uma afronta à LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que garante liberdade de cátedra aos educadores do país”, afirma Victoria.
Segundo ela, essa situação na qual se estimulam gravações e filmagens em sala de aula pode criar um clima de constrangimento entre professor e aluno, o que seria prejudicial ao processo de aprendizagem. “A escola é um espaço de pluralidade e de debate de ideias. Serve de local para a reflexão sobre questões da sociedade no aspecto filosófico, político e de todo o conhecimento. É um espaço para o debate livre com respeito às opiniões, gerando formação e crescimento pessoal. O cerceamento da liberdade provoca o cerceamento do crescimento pessoal”, considera.
Conforme Victoria, o Sind-UTE já tomou medidas cabíveis e orientou a categoria. “A relação professor e aluno deve ser a mais prazerosa possível e a mais harmoniosa possível. Essas ações intimidatórias fazem o contrário e empurram essa relação para um campo conflituoso.”
Observatório quer impedir ameaça à ordem democrática
Apesar de a ação civil pública ainda não ter sido julgada pela Vara da Infância e Juventude de Juiz de Fora, ela vai ao encontro do que defende o recém-criado Observatório da Violência Política em Minas Gerais: coibir por meios legais todas as violências e ameaças contra grupos vulneráveis, entre eles os professores. O observatório é composto por representantes de diversos segmentos sociais e busca impedir qualquer tipo de ameaça à ordem democrática. Um dos integrantes do observatório é o cientista político Rudá Ricci, de Belo Horizonte. Presidente do Instituto Cultiva, Rudá também é criador de uma rede nacional de resistência democrática composta por mais de 200 representantes religiosos, filósofos, associações nacionais e internacionais, policiais, entre outros.
Para Rudá, incentivar a prática de filmar e denunciar professores não é apenas um ato ilegal, mas um caminho para a barbárie. “O que está se propondo em relação à filmagem de aula do professor e a tentativa de inibição da liberdade de cátedra é ilegal. Estamos sendo cada vez mais objeto de uma sociedade do terror. Esse tipo de ação de incentivo a um ato ilegal é típico de regimes totalitários. Nós tivemos isso na revolução cultural da China, no Nazismo, no Estado Novo brasileiro, no Regime Militar. É um ato de vandalismo cívico, uma destruição da noção de nação, cujo conceito significa os valores morais que unificam as pessoas que residem no território, a partir de um senso comum de solidariedade e de identidade social. Esse tipo de ação é anti-cívica e característica de um estado de exceção. A disseminação da desconfiança é um estímulo à violência. É a selvageria, porque se esgarça a nação e coloca brasileiros contra brasileiros”, explica Rudá, autor do livro “Desafios do Educador”.
O sociólogo destaca, ainda, que a destituição da autoridade do professor resulta em enorme prejuízo para a formação de crianças e adolescentes. “Ao colocar nos alunos o poder de destruir a autoridade educacional, estamos deformando nossas crianças e jovens. É um ato de destruição da estabilidade do sistema educacional brasileiro e do próprio equilíbrio familiar. A base da Constituição e da Lei de Diretrizes e Bases é respeitar o pensamento. A democracia é um regime que tem uma ordem social e legal. A existência democrática é o respeito ao diferente”, alerta Rudá.
Comissão tenta votar novamente projeto da Escola sem Partido
A comissão especial que analisa o projeto de lei da chamada Escola sem Partido (PL 7180/14) volta a se reunir, nesta quarta-feira (7), para discutir o substitutivo do relator, deputado Flavinho (PSC-SP). O texto sugere algumas mudanças em relação ao parecer anterior, entre elas a inclusão de artigo determinando que o Poder Público não se intrometerá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou tentativa de conversão na abordagem das questões de gênero. Segundo a assessoria de comunicação da Câmara, estão mantidas no texto uma série de proibições para os professores das escolas públicas e privadas da educação básica, como promover suas opiniões, concepções, preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias. Além disso, está mantida a proibição, no ensino no Brasil, da “ideologia de gênero”, do termo “gênero” ou “orientação sexual”.
Na semana passada, alunos e professores lotaram o plenário da comissão para protestar contra a matéria. Houve embate com alguns defensores do Escola sem Partido, que também estavam no plenário em menor número. Por causa disso, o presidente da comissão, deputado Marcos Rogério (DEM-RO), não descarta a hipótese de a nova reunião ser fechada ao público. A oposição, no entanto, já avisou que não aceitará que a reunião seja fechada. A votação da semana passada acabou adiada. Nesta quarta, há ainda a possibilidade de um pedido de vista adiar novamente a votação. A comissão volta a se reunir no plenário 1 a partir das 14h.
Tópicos: educação