As histórias contra o silêncio de dona Lídia
Aos 82 anos, dona Lídia resolveu compartilhar uma história que viveu aos 16 e que nunca havia contado para ninguém, sobre um clarão na roça, narrativa que agora é seu primeiro livro
Na roça os dias eram todos os mesmos. Num deles, quando o sol já se despedia, o marido chamou a jovem Lídia, de apenas 16 anos, para ir à casa de um vizinho. César carregava o violão para tocar na roda de amigos. A mulher não quis ir e ficou passando roupa. O ferro era à brasa e bailava sobre as roupas dispostas num grande móvel da sala. A porta estava com um lado fechado e outro aberto. Dava para ver o lado de fora, o mato, as estrelas que pouco a pouco se achegavam, a lua que despontava. Terminado o trabalho, Lídia sentou-se na entrada de casa. Uma escuridão danada. A cigarra cantava. De repente, uma luz. “Era um clarão. Pertinho de mim. Veio para o meu lado. Não esperei. Corri e fechei a porta, morrendo de medo. Enfiei debaixo do cobertor e fiquei tremendo”, lembra. O marido não demorou a chegar. E o coração de Lídia aqueceu.
A experiência, no entanto, transformou-se em silêncio. Um silêncio ensurdecedor. “Não contei para o meu marido porque se eu contasse ele poderia falar que eu estava mentindo, inventando”, diz a mulher, que passou, então, a se questionar, dia após dia, sobre a visão. “Porque Deus permitiu que só eu visse? Ninguém mais, só eu!”, questiona Lídia de Almeida Andrade, aos 82 anos, mais de seis décadas deles convivendo com o que se tornou um segredo. “Nunca me esqueci. Parece que foi hoje”, conta ela, com “Disco voador? Será?! Uma história real” nas mãos. Com ilustrações da filha Denise, que inaugura o próprio selo Melange com o título da mãe, a obra infantil revela a história e confirma Lídia como a contadora de histórias que sempre foi.
“Desde pequena eu invento historinhas. Eu fazia igual uma novela: todo dia contava um pedacinho. Casei muito nova, fiquei dois anos lá na roça. O tempo foi passando, criei os filhos todos e há pouco tempo tive um AVC (acidente vascular cerebral). Pensei assim: ‘Gente! Vou partir e não vou compartilhar com ninguém essa história?’. Quando as pessoas falavam que viram isso ou aquilo numa reportagem eu tinha vontade de falar. Nem para os meus filhos eu havia falado. Um dia, inchada em casa, passando o dia inteiro no sofá, peguei o caderno e a caneta e passei a história para o papel. Minha filha viu e falou: ‘Mãe, dá um livro!’. Eu falei que não sabia escrever direito, mas ela disse que corrigiria. Levei um mês pensando e deixei ela corrigir e ilustrar”, narra a idosa, mãe de Roberto Carlos, Ademilde, Jânio, Neide, Elizete e Denise, avó de nove e bisavó de sete.
Romance campestre
Santa Rita do Ituêto é pequenininha. Sempre foi. Fica perto de Resplendor, no Vale do Rio Doce. Do lugarejo, Lídia, os pais e os cinco irmãos saíram quando começavam os anos 1940. O pai era dentista, mudava bastante. “Ele era muito nervoso. Batia na gente, beliscava. E eu não era muito obediente. Mas depois meu pai foi embora, deixou a família e foi morar com outra mulher. Minha mãe era muito doente, nem corrigia a gente”, lembra Lídia, que morou em Lajinha e passou parte da adolescência em Conceição de Ipanema, onde se casou, aos 16. César era quatro anos mais velho e convenceu a mulher a morar no sítio do pai, no Córrego do Ouro, onde não chegava gente e o verde dominava a paisagem. Ele cuidava das quatro fazendas da família. E Lídia ficava sozinha. Passava dias sem ter com quem conversar. Às vezes visitava algum vizinho. Na época da colheita de café ainda passava parte das manhãs fazendo o almoço para todos os funcionários da lavoura. A vida era confortável. Sem luxos, no entanto. O silêncio era natureza, invadindo cada fresta da casa. “Eu andava no meio do mato, entre as plantinhas e as galinhas. Tinha uma lagoazinha perto de casa e uma lontra saía dali e pegava as galinhas. Eu ficava vigiando, quando ela pegava eu tomava dela. Era uma vidinha muito simples mesmo”, rememora a mulher, que no lugar teve seu primeiro filho. Depois de dois bucólicos anos, a então pequena família se mudou. Voltaram para Conceição de Ipanema. E começaram uma espécie de peregrinação por diferentes endereços, enquanto César passava por diferentes ofícios, de motorista de ônibus a retratista. Pouco a pouco os Almeida Andrade iam aumentando em número e sonhos, que carregaram por Manhumirim, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. Há 46 anos desembarcaram em Juiz de Fora.
Drama citadino
Monte Castelo era o bairro que a família escolheu morar na Juiz de Fora movimentada e agitada aos olhos de Lídia, que passava o dia costurando, ofício aprendido sozinha. A primeira calça levou dois dias para fazer. Depois deslanchou. Enquanto isso, o marido tocava uma loja de revelação fotográfica no Bairro Fábrica. “Dali saímos e fomos parar em Delfinópolis, no Sul de Minas, para lá de Passos, pertinho de Franca. Uma cidadezinha de seis mil habitantes. O melhor lugar que morei foi lá. Um povo muito bom, muito amigo. Lá eu me aposentei. Eu trabalhava na roça, apanhando café. Levantava 4 horas da manhã. Quando eu pegava os pés bem carregadinhos, aí é que eu gostava! Punha uns panos de dois metros no chão e colhia quatro pés de uma vez só. Depois juntava o café que estava no pano dentro do saco. Davam 14 horas, e eu parava. Ia para os pés de mexerica, cortava cana, colhia abóbora. Eu me divertia. Como eu gostava de ficar na lavoura! Teve um dia que quando deu meio-dia resolvi almoçar de uma vez. Peguei um fogareiro, botei álcool e já ia riscar o fósforo quando ouvi me gritarem: ‘Olha a cobra!’. Fui ver, e tinha uma cascavel enorme onde eu ia pegar o café”, conta. Passados três anos, a família voltou para Juiz de Fora. Lídia decidiu, então, fazer salgados e bolos para complementar a renda. “Tinha dias de eu fazer 30 bolos. Eu mesma fazia e eu mesma ia nas casas, de segunda a sexta. Deixava tudo fiado. Sábado eu voltava para receber. Quando parei, só umas três pessoas ficaram me devendo. E eu também não cobrei”, lembra a idosa, que passou a fazer cobranças de serviço de telemensagens, quando, então, começou a sentir dores no peito e após um período internada precisou passar por um cateterismo e uma angioplastia, colocando cinco stents. Tempos depois, aos 79 anos, dona Lídia sofreu o AVC.
Suspense caseiro
Jardim do Sol é o endereço onde fica a casa que hoje divide com três filhas e o marido e onde passa horas e horas lendo seus livros. “Depois do AVC, o coração estava fraquinho. Fiquei sem fazer nada, quietinha”, lembra. Na leitura, descobriu a oportunidade de realizar ações e gestos que já lhe eram proibidos. O silêncio, agora, não lhe dava tédio mais, como na juventude na roça. Lídia, que completou o primário aos 29 anos, quando vivia em Manhumirim, onde o marido se tornou gerente de um cinema e ela dona de lojinha com roupas, bijuterias e outros pequenos materiais, só cursou o último ano do ginásio mais tarde, em São Paulo. De repouso forçado, lia títulos comprados, no início. Depois, a filha caçula passou a fazer empréstimos de livros na Biblioteca Municipal Murilo Mendes. Quinzenalmente Lídia vai ao local. Gosta de histórias de suspense e espionagem. De Agatha Christie e Arthur Conan Doyle. Hoje divide-se entre as atividades religiosas, na Congregação Cristã no Brasil, a leitura e, também, a escrita. Tem histórias sobre bichos de todos os tipos, como a do ácaro, que conta para um bisneto que faz de tudo para não tomar banho. Na gaveta, já prontinha, tem a história de uma festa no céu feita por bichos. A maioria das tramas, no entanto, surgiram na infância, com Lídia rodeada pelas amigas e pela natureza. “As ruas eram de grama, só com uns trilhos por onde a gente passava. Não tinha carro, nem bicicleta, nem nada. A gente sentava na grama e ficava. De vez em quando, passava o circo, e eu não perdia um.”