A democracia e o dilema da liberdade


Por Marcos Paulo dos Reis Quadros, Cientista Político e Pró-Reitor de Graduação da Estácio BH

12/04/2023 às 07h00- Atualizada 12/04/2023 às 16h02

A democracia tem no livre fluxo de ideias políticas um de seus pilares mais caros. Múltiplas visões de mundo convivem em sociedade, partidos e líderes defendem seus projetos sem travas, e as instituições se moldam para garantir que essa boa acepção de permissividade seja inviolável.

Tal arquitetura foi receitada por uma legião de pensadores, de Tocqueville a Bobbio. Contudo, as coisas não são tão perfeitas, e de tempos em tempos a realidade nos obriga a perguntar se devem existir limites para a liberdade política.

Há dois modelos que testam esse problema. O primeiro supõe que a liberdade é o valor maior, quase sacro. Pode-se defender publicamente qualquer ideia política, o que inclui soluções revolucionárias, à direita e à esquerda. Entende-se que se trata de um custo justo para conservar casta a deusa da liberdade.

O segundo modelo julga que certas restrições são paradoxalmente necessárias para amparar a liberdade política. Na senda de Karl Popper, tolerar o intolerante seria suicídio. Pode-se lutar por diferentes modos de gerência da democracia (liberalismo, conservadorismo, social-democracia etc), mas não vale o mesmo para doutrinas ditatoriais por excelência.

Ônus e bônus são visíveis em ambos os contextos. O primeiro afasta a chaga das polícias políticas e nos dá o acesso sem medo a todas as propostas, mas pode deixar o sistema vulnerável, a depender do tipo de cultura cívica reinante. O segundo tende a proteger o sistema contra ameaças que se valem da liberdade para destruí-la, mas pode oferecer poder a obscuros censores que, desde a redoma dos seus gabinetes, arbitrariamente decretam o que é a verdade e o que é ou não permitido.

Ao seu modo, o caso brasileiro se enquadra no segundo modelo. Embora os constituintes tenham nos garantido larga liberdade política, na prática convivemos desde o início com o seletivismo ideológico. Criminalizamos alguns tipos de extremistas (como os nazistas), mas outros propagandeiam em paz (como os comunistas).

Com o tempo, as exceções se avolumaram, e a sanha pelo controle parece estar vencendo o duelo. Anestesiados (como em parte ocorreu nos anos 1970), acostumamo-nos com a censura prévia, com as decisões monocráticas que cancelam leis vindas dos parlamentos e escolhas geradas pelas urnas, com o auto policiamento quando falamos no dia a dia, mesmo em privado, sobre certos temas que antes eram tidos como inofensivos. Tudo isso é tão danoso para a democracia quanto a depredação de prédios públicos praticada por black blocs (2013) e facções bolsonaristas (2023). Não deveria importar a cor ideológica quando se mede comportamentos antidemocráticos.

Ou nos guiamos pela ênfase na liberdade ou optamos pela ênfase na contenção dos descontentes, aceitando as consequências para todos, sem conveniências sectárias. Se há hesitação, por hora vale questionar se por acaso não estamos asfixiando a democracia com a capa destinada a protegê-la. Como diriam os antigos, importa ter cuidado para “não jogar o bebê junto com a água do banho”.

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