Inaugurado esta semana, museu virtual criado em JF põe foco na relação entre arte e trabalho
O olhar, as mãos e as memórias do trabalhador: Com foco na pessoa comum e em suas histórias, Museu de Artes e Ofícios Bodoque é inaugurado em ambiente virtual com exposição de açougueiro que, apaixonado por fotografia, produziu centenas de imagens da cidade e das pessoas ao seu redor
João nasceu em 1917, em Arraial de Quilombo, lugarejo que mais tarde veio a se chamar Bias Fortes, a cerca de 80km de Juiz de Fora, para onde se mudou ainda jovem, na esperança de encontrar uma vida melhor. Conseguiu trabalho num açougue e tempos depois tornou-se sócio do comércio. Não raro, do dinheiro que recebia, investia boa parte em equipamentos e materiais fotográficos, investigando todos os processos, da manutenção das câmeras à revelação. “Ele construiu tudo de maneira empírica, com uma baita estrutura, sobre a qual ele dedicava horas e horas de sua vida para viabilizar uma foto, que ele não vendia. Era um fotógrafo amador e não tinha lucro com nada. Pelo contrário, se chegava no Parque Halfeld e avistava uma criança, pedia para a mãe para fotografá-la e, depois, em casa, ampliava e dava a foto para a família”, conta o neto, Frederico Lopes, que assina a curadoria da exposição virtual “Futuras vanguardas – Fotografias estereoscópicas em Juiz de Fora na década de 1950”, que não apenas marca a primeira individual, já póstuma, de João Lopes Lisboa, como também a estreia do Museu de Artes e Ofícios Bodoque, criado por Frederico.
Ainda que não soubesse precisar o que o levou à fotografia, João não negava um encantamento enorme pela arte, sentimento que transborda de seus registros. Seus dias de folga no açougue, às segundas-feiras, eram também os dias de caminhar pela cidade praticando sua paixão pela fotografia. “Era um cara simples, pouco escolarizado e de uma sensibilidade brilhante. Não digo isso só do ponto de vista das artes, no qual se vê uma sofisticação nos termos de composição da luz, uma investigação artística, mas também do ponto de vista do homem comum prático. Ele era aquele cara que quando via o lápis acabando, e não dava para pegar mais, entendia como um problema e propunha soluções criativas. Nesse caso, a solução era cortar um pedaço da mangueirinha do chuveiro e encaixar no lápis para dar uma sobrevida ao objeto. Ele carregava uma genialidade própria do cotidiano do homem comum”, recorda-se Frederico, filho de um dos seis filhos de João e Antônia, casal que se despediu no período de um ano, ela aos 93, ele aos 94 anos.
Grande parte das imagens do agigantado acervo deixado por João foram feitas com uma câmera Rolleiflex, mas ele também tinha uma máquina de fotografia estereoscópica e algumas outras. Segundo o neto e curador da mostra, é possível identificar agrupamentos temáticos em sua vasta produção, como fotografias de família, com imagens da esposa, da casa e dos filhos; e fotografias da cidade, com registros de monumentos, praças e parques. Com a fotografia estereoscópica, o artista amador aprimora sua linguagem e sua estética. Criada em 1849, por um inglês, a técnica simula, com duas lentes, os dois olhos humanos, criando imagens ligeiramente distintas que, quando observadas num visor estereoscópico com seu jogo de espelhos, são unidas criando a ilusão de relevo.
“Ele começa a montar cenários. Fica na frente do muro, empurra o portãozinho, coloca uma filha sentada no primeiro degrau da escada, outra filha no outro, abre a porta de casa atrás e deixa o sol lá dentro. Quando faz a foto, a sensação de tridimensionalidade está em várias camadas. A capacidade técnica influenciou o olhar dele”, observa o curador, também artista visual e educador. Para visualizar as imagens em ambiente virtual, o Museu de Artes e Ofícios Bodoque cria gifs nos quais é possível perceber a alteração das imagens e, portanto, a profundidade que sugerem. “Futuras vanguardas” revela a simplicidade e a sofisticação envolvidas no trabalho do homem que descobriu a fotografia aos 30 anos e dela nunca mais abriu mão.
A arte dos ofícios, o ofício das artes
A paixão e a artesania expressas no trabalho de João Lopes é o foco do projeto do neto, inaugurado nesta semana. “A gente nunca viu a Bodoque como uma marca, até porque nunca lucramos e não será agora. Sempre olhamos de maneira crítica para a Bodoque como uma instituição cultural. Nossa ideia é atuar na área da cultura, podendo dar uma contribuição, fazendo eco na comunidade. O museu é um dos braços previstos nessa loucura minha”, conta Frederico, cuja criação ainda envolve uma revista, a Trama, virtual e impressa, canal de YouTube, estúdio de design, uma escola livre, uma loja de cadernos artesanais e um ateliê de criação e restauração, além da recém-fundada editora. “O museu é uma coisa mais pessoal. Tem uma relação afetiva”, pontua Frederico Lopes.
Por enquanto o Museu de Artes e Ofícios Bodoque será virtual, nos moldes do Museu da Pessoa, ainda que o acervo inicial seja físico. No corpo técnico, porém, constam cinco pessoas, entre direção, coordenação de pesquisa, arte-educação, produção cultural e manutenção digital. A proposta, segundo seu fundador, é também criar um arquivo documental da pessoa comum na cidade, documentando relatos de trabalhadores envolvidos com práticas artesanais, do talhador de madeira ao alfaiate. “Também vamos atrás dos artistas. Queremos destacar o ofício das artes, e a arte nos ofícios”, resume Frederico, ressaltando o trabalho como um valor em si nas artes.
“A importância de lançar um olhar sobre o homem comum, enxergando o valor das suas experiências e vivências profissionais, valorizando isso, permite compreender o papel desses sujeitos na sociedade e possibilita a ele o sentimento de pertencimento de uma estrutura maior”, reflete. “Espero que as pessoas se sintam representadas”, sugere Frederico, contando do dia em que seu avô sentiu-se representado numa galeria de arte. Era 2011, no Foto11, e Frederico apresentava pela primeira vez parte do acervo sobre o qual dedicou sua pesquisa de conclusão no curso de artes e design da UFJF. João estava lá, recebendo cumprimentos por uma obra forjada despretensiosamente. “Ele nunca participou de mostras e sequer enxergava como um trabalho artístico. A questão para ele era afetiva.”
“Futuras vanguardas”
Visitação até 21 de novembro, no site do Museu de Artes e Ofícios Bodoque . Visitação mediada pela educadora Gabriela Alves na próxima sexta (25), às 16h, gratuita, com inscrições pelo e-mail [email protected]