Existe “alta” e “baixa” cultura? Tribuna discute assunto em série
Revisando alguns dos principais problemas identificados na área da cultura ao longo do ano, a Tribuna inicia série questionando pesquisadores, gestores e produtores sobre propostas para uma nova cena
Ano de conflitos, 2019 também pode ser encarado como um ano de prospecção. Se não proporcionou o avanço das políticas públicas de cultura, ao menos apresentou, por meio de tantos e tantos confrontos, onde estão os gargalos de um setor enfraquecido pelos diminutos recursos e pelos crescentes ataques. “Onde estamos?” parece pergunta respondida ao longo dos meses. “Para onde vamos?” é questão em aberto num cenário que muito explorou os problemas e pouco debateu as soluções. “Cultura é um conceito ampliativo. Cultura é, sim, hoje, complexidade. Cultura, por essa sua natureza mutante e anamórfica, talvez devesse receber mais investimentos do pensamento crítico em processos de reflexão do mundo e das coisas, como também em movimentos de autorreflexão”, defendeu o professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) Martin Grossmann em sua última coluna na Rádio USP.
Para compreender tamanha complexidade e acenando com propostas, a Tribuna inicia neste domingo (22) a série “Cultura amanhã”, na qual formula diferentes questões para pesquisadores, gestores e produtores culturais de Juiz de Fora. As respostas, publicadas na íntegra, discutem do financiamento ao pensamento sobre como se expressa a cultura, passando, ainda, pelo acesso e pelo consumo, sem deixar de lado os aspectos referentes à organização da classe artística. No mesmo ano em que o Governo Federal transformou o Ministério da Cultura em secretaria espacial, anteriormente subordinada ao Ministério da Cidadania e atualmente integrando o organograma do Ministério do Turismo, o debate sobre o setor ganhou espaço na grande mídia, nas conversas de botequim e, principalmente, nos espetáculos, com artistas de diferentes tendências defendendo a cultura como via fundamental para o desenvolvimento do país.
Como um efeito cascata, as verbas destinadas para a área reduziram-se nas três instâncias do Governo: federal, estadual e municipal. Resistência tornou-se palavra de ordem, portanto, tanto entre produtores quanto entre gestores públicos. Em Juiz de Fora, os contingenciamentos fizeram-se perceptíveis na redução dos eventos promovidos pela Prefeitura. Nos segundos finais, um festival reuniu diversas linguagens. Ao carnaval, mais uma vez faltou fôlego para que os desfiles de escolas de samba acontecessem sem o financiamento público, e, pelo segundo ano seguido, as agremiações cancelaram a festa, numa progressiva deterioração da folia das quadras. Em contrapartida, o edital de recursos recordes da Lei Murilo Mendes, com R$ 1,5 milhão distribuídos para a classe, foi liberado com resultado a ser divulgado nos primeiros meses de 2020. Nem tudo estava perdido. Nem tudo está perdido. A cena cultural juiz-forana e mesmo a brasileira viveram momentos de grande projeção em 2019.
“Bacurau”, filme vencedor do Prêmio do Júri em Cannes e assistido por quase um milhão de brasileiros, representa essa arte que, subvertendo as expectativas, criou novo espaço para si ao refletir justamente sobre o próprio lugar, o próprio país e o próprio povo. “A violência que o filme vinga, passada, presente e futura, é aquela que existe nas fronteiras do capitalismo e do Estado. É a violência a que estão expostos aqueles que, sem nunca serem incluídos por completo nem nos serviços públicos nem no mercado, podem a qualquer momento se tornar objetos do poder político ou do interesse econômico. É a violência que ronda os ‘involuntários da pátria’, na expressão certeira de Eduardo Viveiros de Castro: indígenas acossados pela fronteira extrativa, camponeses cercados por posseiros e jagunços, favelados ameaçados pela especulação imobiliária, pela polícia, pela milícia”, pontua, preciso, o crítico e filósofo Rodrigo Nunes em texto para o “El País Brasil”.
O longa-metragem de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles também é convite para refletirmos sobre o dualismo que norteia a primeira pergunta da série, sobre a insistência no senso comum de compreender a existência de um “alta cultura” e uma “baixa cultura”. Entendimento expresso na projeto de lei do deputado federal Charlles Evangelista (PSL-MG) sobre a criminalização de certos estilos musicais no Brasil. A proposta previa tipificar como crime autores de canções, discos e letras que contivessem termos pejorativos. Apresentado em 24 de setembro, o projeto de número 5194/2019 foi retirado por requerimento de 6 de novembro. A noção, no entanto, prevalece em outros casos, como no discurso do atual presidente da Funarte, Dante Mantovani, que em um dos vídeos de seu canal no YouTube afirma que o “rock ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto”. O dualismo ainda está em episódios de cancelamento de espetáculos Brasil afora e na ameaça de recolhimento de livros. Está como problema de um país marcado por tantos outros dualismos.
Como ser propositivo quando ainda nos pautamos na ideia de que há “alta” e “baixa” cultura?
Fernando Perlatto Bom Jardim responde
Historiador, é professor dos departamentos de história da UFJF e de ciências sociais da Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg). Doutorado em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, é pesquisador do Laboratório de História Política e Social (Lahps), vinculado à UFJF e associado às redes de pesquisa Conexões Lusófonas: ditadura e democracia em português e Direitas, História e Memória. É autor de, entre outros, “Esferas públicas no Brasil: Teoria social, públicos subalternos e democracia” (Appris Editora), de 2018, e editor da Revista Escuta (https://revistaescuta.wordpress.com/)
A meu ver, três desafios se colocam como centrais para responder a esta pergunta: o primeiro deles é a necessidade de criticarmos e desnaturalizarmos esta dicotomia existente entre “alta” e “baixa” cultura. É importante reconhecer que esta separação foi socialmente construída por diferentes sujeitos e instituições ao longo do tempo, resultando em processos de distinção social. Além disso, é fundamental atentar para o fato de que essas categorizações são fluidas e variadas, resultado de disputas simbólicas, e uma produção cultural hoje considerada como “baixa cultura” pode ser, em outro momento, considerada como “alta”. Deste modo, a problematização da dicotomia “alta”/”baixa” é fundamental para possibilitar a valorização de produções culturais que foram historicamente consideradas como “baixa cultura”, conferindo a elas novos espaços e visibilidade. O segundo desafio é, ainda que reconhecendo a construção social desta distinção entre “alta” e “baixa” cultura, não recairmos em um relativismo exacerbado, como se não fosse possível, a partir de determinados critérios, distinguir e hierarquizar produções culturais diversas, sem que isso implique, é claro, no silenciamento ou na falta de apoio a qualquer tipo de manifestação cultural. O terceiro desafio – e aquele que considero mais central – é pensar de que maneira o Poder Público pode desenvolver políticas que contribuam para a democratização da produção e do acesso à cultura, sem estabelecer distinções, a priori, entre “alta” e “baixa” cultura. Em uma sociedade democrática, é importante que sejam desenvolvidas políticas de Estado – e não de governos de ocasião – capazes de assegurar que as diversas manifestações culturais, sobretudo aquelas com maior dificuldade de acesso aos recursos privados, tenham espaço e possam circular para além de suas fronteiras, garantindo-se também o acesso à cultura para as diferentes classes sociais. Ainda que contando com o apoio da iniciativa privada, cabe ao Poder Público atuar como um agente indutor no sentido de garantir as condições necessárias para que os espaços públicos e os equipamentos públicos de cultura se tornem locais vivos e permanentes de ocupação e de mistura entre aquilo que é hoje considerado “alta” e “baixa” cultura. É a partir destas ideias de ocupação e de mistura que a cultura, principalmente em uma sociedade desigual como a brasileira, pode ser pensada como um instrumento potente de reflexão e de democratização social.
“Ainda que contando com o apoio da iniciativa privada, cabe ao Poder Público atuar como um agente indutor no sentido de garantir as condições necessárias para que os espaços públicos e os equipamentos públicos de cultura se tornem locais vivos e permanentes de ocupação e de mistura entre aquilo que é hoje considerado “alta” e “baixa” cultura” – Fernando Perlatto