Um retrato do retratista: Cleverson fez do Calçadão sua galeria
Quem é o homem que desenha e expõe no Calçadão os retratos que faz de anônimos e famosos
O delineado da boca, a linha do nariz, a altura e o formato dos olhos, o volume das sobrancelhas, os fios de cabelo, todas as áreas de luz e sombra surgem com precisão do lápis empunhado pela mão segura de Cleverson Pires Fernandes. Prática que exige, sobretudo, conhecimento técnico, o desenho de figura humana existe na vida do homem de 48 anos desde a infância, aos 10. Autodidata, o menino reproduzia cenas de revistas, quadrinhos e, principalmente, observava outros desenhistas. “Eu já gostava. Tinha um vizinho meu que desenhava, e eu peguei umas manhas com ele. Eu me inspirei nele”, conta o homem, apresentando retratos que fez de artistas como Raul Seixas, Chico Anysio, Madonna, Ayrton Senna e também de anônimos, que passam pela banca que ele monta ao lado da loja Pernambucanas, na esquina das ruas Halfeld e Batista de Oliveira.
“Aos poucos, fui treinando. A internet me ensinou muito também. Quanto mais desenho, melhor vai ficando o traço”, comenta Cleverson. Nascido numa família de quatro irmãos, filhos de um policial com uma dona de casa, o desenhista recorda-se de sempre escolher o papel e o lápis em detrimento das outras brincadeiras. “Na minha memória, eu só desenhava. Quando a gente vive de desenho, é isso a vida inteira”, diz ele, sorrindo. Tanto em casa quanto na sala de aula, Cleverson era incentivado. Estudou até o segundo ano do ensino médio. “Comecei a desenhar e a ganhar, então pensei: ‘Não vou ser mais nada, vou só desenhar!’.”
Doni Madonna, de Michelangelo
Há os que reparam em tudo, os que de cabeça permanecem, os que olham para frente e nada veem, os que andam como se flutuassem. No vaivém do Calçadão, Cleverson encontrou uma plateia maior do que a do Parque Halfeld, onde passou oito anos dos 14 desde que decidiu dedicar-se com afinco ao desenho. “É bom esse contato direto com o público, essa exposição. Eu faço uma exposição todo dia nas ruas”, pontua, confirmando existir uma intensa demanda. “Em Juiz de Fora não tem ninguém na rua desenhando, então o pessoal me procura bastante para fazer esse serviço”, diz o homem, casado há 20 anos e pai de dois filhos – um de 20 e outro de 15. Os meninos desenham bem, garante ele, nascido e criado no Teixeiras, bairro onde, ainda hoje, vive. Com diferentes lápis e grafites, o artista executa trabalhos em apenas dois tamanhos: A3 e A4. A execução ao vivo já não é o mais comum, conta, segurando nas mãos a prancheta onde faz as imagens. “A maioria dos desenhos faço a partir de fotos que me enviam por celular. A pessoa vem, passa para o meu celular na hora e fica mais fácil. Antigamente eu fazia mais ao vivo. Com a pessoa na frente é mais rápido, porque ela é bem maior do que na foto”, diz ele, calculando gastar pouco mais de meia hora em cada retrato ao vivo. De sua pena saem figuras fantásticas, veículos e tudo o que for possível. “Desenho de tudo”, assegura. O público, no entanto, prefere retratos. “Rosto, o pessoal gosta mais, seja para colocar num porta-retrato ou para colocar na parede.”
A vida, de Picasso
O primeiro emprego de carteira assinada de Cleverson foi na adolescência, como barman na Murilândia, misto de lanchonete e parquinho de diversões que marcou os anos 1980 na cidade. Por lá o jovem ficou pouco mais de um ano. “Sempre desenhava por fora e ganhava um dinheirinho”, ri ele, que em seguida foi empregado como copeiro no Clube Cascatinha. Depois atuou como fiscal de ônibus na rodoviária, porteiro e fiscal de área azul. No início dos anos 2000, Cleverson tinha duas locadoras de vídeo, uma no Milho Branco e outra no Teixeiras. Depois de sete anos, passou o ponto, primeiro, da loja da Zona Norte. “Começou a entrar o DVD e a internet foi ganhando força. Fiquei só com a de Teixeiras e depois fui apostar mais no desenho. Ainda bem que fiz isso. É mais tranquilo e tenho boas encomendas. Todo dia tenho trabalho”, afirma. Nos últimos anos, Cleverson ainda assumiu alguns serviços como porteiro, mas uma artrose na bacia o impede. “Não tenho cartilagem nenhuma mais. Sinto muita dor. Não consigo ficar sentado ou em pé. Até para desenhar está me atrapalhando. Vou acabar parando, não vai demorar”, lamenta ele, também diagnosticado como diabético do tipo 2, o que o obriga a se manter distante dos excessos. O cansaço nas ruas e as dores intensas já despertaram no retratista a necessidade de desenhar planos futuros. Em suas páginas nas redes sociais, Cleverson recebe encomendas de todo o país. Ali pretende investir cada vez mais.
Filósofo meditando, de Rembrandt
Michelangelo soube, como ninguém, representar a figura humana. Picasso soube desconstruí-la, também de maneira singular. Rembrandt, por sua vez, soube retratar pessoas e também almas. Nas referências de Cleverson, estão clássicos da pintura mundial. Influências que carrega para as aulas particulares que costuma dar na casa de seus alunos. E que também estão na ponta do pincel de seus quadros a óleo. “Pinto, mas prefiro o grafite, porque é mais rápido”, diz, revelando-se tão ansioso quanto detalhista. Todos os dias, Cleverson chega ao Calçadão por volta das 10h30 e sai próximo das 16h. “Aqui tem de tudo o dia inteiro. O desenho exige que esteja concentrado, senão não sai. Já me acostumei com o Calçadão e consigo me concentrar.” Os trabalhos, a cadeira e as grades que lhe servem de parede para as obras, ele guarda num estacionamento na Floriano Peixoto. Retorna para a casa, de ônibus, e começa uma nova jornada. “Vou até 23h desenhando em casa, para dar vazão às encomendas”, orgulha-se, estimando já ter produzido mais de 10 mil retratos ao longo da vida. Material que espera, um dia, expor no Espaço Cultural dos Correios. Material que nunca compôs uma exposição sequer. “Não ligo para isso. Tem gente que sofre porque desenha muito e tinha que ser reconhecido. É uma besteira! Aqui todo mundo me vê. Quer mais reconhecimento que isso?!”