A longa estrada da vida de dona Lalade
As velinhas se ampliam sobre o bolo: Nos documentos, tirados já na vida adulta, dona Lalade tem 116 anos, mas família estima 108, o que não reduz sua longevidade
Com a esposa, Lourdes, grávida do primeiro filho, João procurava uma ajudante quando Geralda lhe foi indicada. A família era conhecida e confiável. E o homem seguiu até a moradia de acabamento bastante simples, propriedade da Sociedade de São Vicente de Paulo, em São João da Serra, distrito de Santos Dumont. Geralda Martins Ferreira, já viúva, carregava apenas uma muda de roupa e um filho no ventre. “Quando ela foi lá para casa é que botou um chinelo no pé. Ela nunca tinha calçado”, lembra-se Lourdes. A proposta era que seguisse na casa da família Abreu, lavando roupa e ajudando na arrumação da cozinha, até que Lourdes saísse do período do resguardo. Mas a mulher novamente engravidou, e engravidou, e engravidou. “Eu tinha filho todo ano”, ri Lourdes. “Quando a Marize (quarta filha) fez 3 três meses, eu ganhei o João Carlos. Teve uma época em que eu tinha quatro na mamadeira”, lembra. Assim, Geralda, que passou a ser Lalade, criou os sete filhos dos Abreu, alguns dos 13 netos e viu os dois bisnetos nascerem.
Este ano, Lalade completa 60 anos junto da família que ajudou a fazer com que ela passasse a existir. “Ela não foi registrada, casou-se só na igreja, então, a registramos como solteira. Fizemos todos os documentos, carteira de trabalho, tudo direitinho”, lembra Lourdes. “Na época meu pai criou uma idade para ela. Mas depois que os anos se passaram, conhecemos uma irmã dela, que foi registrada. Baseamos a idade dela por essa irmã. Conversamos com uma parente e outro, descobrimos irmãos e sobrinhos. Essa irmã faleceu com mais de cem anos e era a mais nova. A Lalade era a mais velha. Nos documentos, ela tem 116 anos, mas achamos que, na verdade, ela tem 108, no máximo”, conta Valéria, uma das filhas de Lourdes e João. E também de Lalade, que tem apenas uma filha biológica. Todos os seus outros cinco filhos não resistiram à vida dura que levava na roça, inclusive o que esperava quando recebeu o convite de João.
Calejada, a vida
“Minha vida foi pelejada na roça. Sofri muito na roça. Eu trabalhava, era chuva, era sol e eu fui vivendo. Quando meu pai morreu, eu era pequena. Vivia com a minha mãe. Eu capinava, apanhava café, trabalhei muito na roça. Eu e minha mãe, tinha dia que a gente tirava uns quadros (porção de um terreno) para ganhar dinheiro para comer”, recorda-se a idosa centenária sobre o tempo em que saía de casa carregando apenas uma marmita de fubá com caruru (planta comestível). Passava o dia todo sob o sol só com aquele alimento na barriga. “Depois, quando era moça, casei e passei uma vida muito ruim. Fiquei viúva e fui trabalhar na casa dos outros. Agora estou aqui nessa casa. Trabalhei muito. Tinha dia que não sabia o que fazia: era cozinha para arrumar e roupa para lavar”, narra dona Lalade, que nascida em Oliveira Fortes, mudou-se ainda muito pequena para São João da Serra, onde a mãe esmolava para dar de comer aos cinco filhos. Analfabeta, a mulher chegou a frequentar a escola após chegar à casa da família Abreu. Mas desistiu.
Resistente, a vida
Numa queda, Lalade, já com mais de 70, quebrou a clavícula. Era aquele o ponto final na vida trabalhadora. E o começo das sucessivas provas de uma saúde em excelente estado. Pela idade, não foi recomendada a ela cirurgia, o melhor para aquele caso. Dormia e acordava com uma tipóia no braço. Passados 40 dias, já não tinha mais nada. Lalade é de aço. “O que surpreende muito é ela não sentir nada. A Lalade não toma nenhum comprimido. Se aferir a pressão dela, estará 12/8. Ela não tem dor de cabeça, nunca teve. Isso é o que surpreende alguns médicos, que costumam falar que as pessoas podem chegar nessa idade, mas muito debilitada. A Lalade é lúcida, só está perdendo a audição e a vista. Para você ter uma ideia, quando dá o quinto dia útil, ela fala comigo: Hoje é o quinto dia útil, já foi receber para mim?”, conta Valéria. Lalade também tem o costume de se lembrar dos aniversários dos netos. “Se levarmos a Lalade a uma festa de aniversário e ficarmos até as 4 da manhã, ela fica sem reclamar”, aponta Valéria sobre a centenária que ganhou uma linda bengala de Marize, uma das suas “filhas” preferidas (segundo a família), mas preferiu o tronco rústico, como um cajado, com o qual se desloca. “Hoje, para sair, eles têm que me dar a mão”, lamenta, revelando-se vaidosa, a Lalade que toda semana recebe a comunhão da igreja. “Ela foi liberada pelo padre de ir à missa”, brinca Lourdes.
Afetuosa, a vida
Diante da casa, está uma rua pouco movimentada e a linha de trem. Do outro lado da ferrovia, uma das avenidas mais agitadas da Zona Norte. Dona Lalade passa boa parte de seus dias na varanda da casa no Bairro Araújo. À noite, ela costuma assistir novela, colocar a fralda que usa por precaução para dormir, tomar sua farinha láctea e, por volta das 20h, deitar-se para dormir. Acorda mais de dez horas depois. Tem muito sono. Gosta de conversar com a empregada da residência, mas pode passar horas sem nada falar. Não corre para um abraço, mas acolhe todo e qualquer afeto. “Ela sempre foi um luxo com o meu menino, que tem 28 anos. Fui colocar a mão numa roupa do Arthur para lavar quando ele já tinha 8 anos. Ela não me deixava levar”, recorda-se Valéria. “Meus netos, quando eram mais novos, a chamavam de vó e eu de tia”, ri Lourdes, que, como o marido João, tem 84 anos, mais de 20 a menos que Lalade. No imóvel de cômodos grandes vivem os três. Deles, Lalade é a mais saudável. João toma seis comprimidos durante o dia. Lourdes, nove. “Nesse tempo ela nunca saiu daqui, nunca ficou um tempo fora. Ela, às vezes, ia ver a mãe dela nos finais de semana. Depois que ela morreu, parou de ir”, conta Lourdes, citando que raramente Lalade visita a filha, os netos e os bisnetos. “Quer ir para Paula Lima (onde eles moram)?”, pergunta Valéria. “Pelo amor de Deus! Vou lá, tem meus netos, minha filha, mas fico aflita para vir correndo. A gente se acostuma com o lugar da gente, né?!”, responde a centenária. “Quero morar aqui até quando Deus quiser.”