Corredor e catador, seu Antônio ensina a manter o fôlego
Catador de papel e vitorioso corredor, ele dá lição de ânimo e resistência
Primeiro lugar na categoria M9 e 41º colocado na classificação geral, Antônio Carlos da Silva percorreu os 84km do 7º Desafio Praias e Trilhas, de 2008, em Florianópolis, em 13 horas, 13 minutos e 19 segundos. Terceiro lugar na faixa etária 11 do XVII Ranking Prefeitura Bahamas de Corridas Rústicas, em 2003, o mesmo homem saltou para o primeiro lugar dois anos depois, na mesma corrida, mas já na faixa 12. Primeiro colocado por categoria na Ultramaratona 24 horas de resistência, ele também percorreu 118km em 2008, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. E ficou na segunda posição de seu grupo na Maratona de Blumenau, percorrendo 42km em 3 horas e 10 minutos. Da Corrida Internacional de São Silvestre, já participou 17 vezes. No ano passado, ficou em 34º lugar na categoria de 65 a 69 anos, com tempo de uma hora, 21 minutos e 26 segundos. Larga no segundo pelotão. “Ele está querendo escapulir, mas não vou deixar, não quero ir para o terceiro pelotão”, diz ele, já inscrito para a edição deste ano, em que estará na faixa superior, de 70 a 74 anos. Antes, porém, corre a XX Volta Internacional da Pampulha, em Belo Horizonte, neste domingo.
As centenas de medalhas que seu Antônio preserva em casa revelam o esforço que o homem faz nas ruas da cidade. “Não treino em academia. Treino na pista”, ri, apontando para o carrinho amontoado de papelão e outros materiais. “Até 570kg eu já puxei nele. Hoje não aguento mais. Carrego uns 400, 300kg atualmente”, orgulha-se o homem de pele clara e veias saltadas, a confirmar o esforço constante. Com a carga volumosa, ele percorre mais de dois quilômetros, em 25 minutos. “Ando num movimento ligeiro”, classifica. Pelo quilo do papelão, seu Antônio costuma receber R$ 0,20. Já a lata vale R$ 0,40. Caixas de papelão, por exemplo, são mais lucrativas quando vendidas inteiras. Numa calçada ao lado da linha férrea, na Avenida Francisco Bernardino, o homem com seus 70 anos separa todo o material coletado numa manhã. Não reclama. Como um atleta, concentra-se para dar o melhor de si. E sempre consegue.
Lição de estrada
Quando começou a correr profissionalmente, Antônio tinha 54 anos e um raro condicionamento físico. “Eu vinha para apanhar o ônibus de Juiz de Fora e corria de Santos Dumont a Paula Lima. Eu trabalhava e voltava”, conta ele, que vivia com os pais idosos e trabalhava em Juiz de Fora. Para economizar e dinamizar o trajeto que percorria duas vezes ao dia, passou a correr e encarar o exercício como um treinamento. Sua estreia em competições aconteceu já tendo adiante os 21km da Meia Maratona do Ranking de Corridas de Rua de Juiz de Fora. “Na BR-040, eu já tinha feito de Santos Dumont até a Barreira do Triunfo. Era o ideal para mim, porque estava no caminho de casa. Gosto de encaixar uma coisa na outra, vinha e voltava do serviço e treinava ao mesmo tempo”, recorda-se o homem que logo se encantou por correr montanhas, trilhas, mata, praias, que exigem maior resistência. As taxas de inscrição, hotel, transporte, alimentações e outros possíveis gastos, seu Antônio tira do trabalho de catador. “Sul e Sudeste: nesse chão tenho corrido. Só em Florianópolis tem 11 anos que vou. Só este ano já fui três vezes. Em São Joaquim (em Santa Catarina) rodei no gelo, a -8ºC. Já viajei de avião e de ônibus. Hoje vou mais de ônibus”. Fora do Brasil? “Já fui a Foz do Iguaçu e fui almoçar no Paraguai. Onde peguei o kit, dava para ir a pé, porque é próximo da Ponte da Amizade. Eu estava doido para ir para Nova York. Não fui por um passo. Já quiseram me levar para Portugal, que tem oito dias de prova, com 280km. Mas achei muito”, comenta. “A corrida traz muita felicidade para mim, muito bem-estar. Tenho muitas lembranças de onde eu passo, boas recordações.”
Ensinamento de casa
Antônio Carlos nasceu num vilarejo que hoje é água. Transferido de lugar na década de 1990 para a construção da Represa de Chapéu D’Uvas, o distrito de Dores do Paraibuna foi o ponto de partida da vida de seu Antônio e dos três irmãos. Aos 7, o menino já corria para o trabalho de tropeiro. “No mato, trocando tropa minha mesmo. O destino mexe com a gente, e eu mudei”, lembra ele, que aos 25 anos deixou o ofício para se empregar na Companhia Brasileira de Sinalização (CBS), atuando no trecho entre Santos Dumont e Conselheiro Lafaiete, realizando a manutenção da ferrovia. De lá, passou a servente de pedreiro, ofício no qual se manteve por 12 anos. “No último prédio que construí, fiquei de zelador e trabalhei até aposentar. Nesse tempo, eu já catava papel”, conta ele, há 35 anos como catador, coletando material reciclável na feira de São Mateus e em ruas do Centro, além de lojas grandes, como a Americanas. Os estudos, só levou até a quarta série primária. Confirma mostrando o certificado emitido em 1981, aos 33 anos. O trabalho sempre foi prioridade. “Nunca paguei um dia de aluguel. O necessário eu gosto de fazer. E não compro nada fiado, não. Quem ganha pouco dinheiro não pode comprar fiado. Tem que ter de acordo com o trabalho. É só trabalhar mais para comprar outra coisa. Eu nunca tive invocação é com carro”, diz ele, que há 25 anos despediu-se do pai, Bertolino, e, há 20, da mãe, Maria Marcelina. Honrou com o compromisso do casal e assumiu para si um carnê da irmã que dedicou a vida a cuidar dos pais. “Paguei mais 11 anos só, para ela se aposentar”, aponta, humilde, o homem que corre mesmo a contragosto dos irmãos, que consideram perigoso o esporte. Por isso, não vê alguns dos irmãos há décadas. “Não tenho família, sou solteirão, livrinho como um passarinho.”
Exemplo de gente
Às 6h30, seu Antônio já despertou e está na rua, catando papel. Às 20h, retorna para a casa, no Bairro Paineiras. “Toda a vida fiz isso (de trabalhar por muito tempo)”, conta. Receitas, não há, garante. “A minha vida eu fui aprendendo em vão, andando, comendo, trabalhando. Eu me alimento o melhor possível. Tomo vitamina adoidado”, comenta. E em seguida enumera o que vai na mistura: leite, goiabada cascão (bem pouca), farinha de aveia, granola, castanha-do-pará, banana e outras frutas que tiver. Seu Antônio também come muito pepino, cebola crua, ovo cru e queijo. “Não pode mexer é com esse negócio de hambúrguer”, ri. Bebida, assegura não ser do seu feitio. Fumar, nunca fumou. Já o preconceito, sempre careceu de enfrentar. “Tem gente que me vê correndo e fala: Vai trabalhar, vagabundo! Não gosto de responder e vou embora. Já fui chamado de mendigo, também”, lamenta, sem com isso esmorecer. Num jeito matuto, seu Antônio segue em frente. Ora correndo, ora carregando peso. Sempre disposto. “Nunca fui no médico. Vivo como um bicho”, pontua. E acrescenta: “Cansar eu canso, vou levando. Tem que levar na manha para não gastar 90% da energia, nem ficar molengando e gastando pouco. Tem que ficar dosando. Dor de atleta passa rápido.”