Cheia de detalhes e graça: A fantástica coleção de bonecas de Priscila
Rodeada por milhares de bonecas de porcelana, a jornaleira aposentada Priscila apresenta as muitas coleções que preserva em casa
No corredor, à direita de quem entra na casa estão peças de tortura utilizadas no período da escravidão. À frente, um grande relógio, semelhante aos muitos outros que se espalham pelos cômodos. O corredor dá acesso à sala, onde está um trono de madeira, utilizado como sanitário em séculos passados. Sobre o móvel, uma almofada a fazer-lhe de poltrona. Num canto do lugar, fica um pequeno confessionário em madeira, comum em residências em décadas atrás. Agigantadas ou em menor proporção, ocupam quartos e salas da casa de Priscila Monteiro de Barros as vitrines em vidro com bonecas de porcelana em diferentes tamanhos e modelos. A mulher de 61 anos perdeu as contas, mas um cálculo rápido a leva a mais de mil delas espalhadas pela casa, inclusive sobre a cama. Para dormir, coloca as almofadas no chão e algumas bonecas passa para o berço que fica ao pé da cama.
Deitada, Priscila vislumbra uma pequena parte de sua coleção, mas também de outras coletâneas feitas ao longo da vida. São 60 as versões de Betty Boop e 40 as damas de época. Oitenta são as caixas de porcelana. Jornaleira aposentada, também aderiu a outras coleções montadas em fascículos: “Táxis do mundo”, “Carros inesquecíveis do Brasil”, “Caminhões brasileiros de outros tempos” e “Veículos de serviço do Brasil”. Também reuniu as partes e mobílias de uma grande casa de bonecas, como juntou diferentes bonecos do Elvis Presley e acumulou diferentes canecas. Na cozinha, abre as portas do armário sobre a pia e aponta para centenas de copos de vidro decorados. “Uso tudo. Cada dia, é um diferente. Não pode repetir”, diz.
Os móveis antigos acrescidos da meia-luz que toma conta da casa reforçam a sensação de um tempo paralisado, conservado em objetos transbordantes de dias que se foram. “Tudo tem tendência de virar coleção”, confirma Priscila, cujo desejo pelo acúmulo surgiu justamente quando a perspectiva lhe foi retirada do vocabulário. “Em 1979, meu pai se aposentou. E a partir de 1980, quis viajar. A primeira viagem que fez foi comigo. Eu era noiva e fui comprar meu enxoval em Fortaleza. Quando voltei, vi que alguma coisa estava errada”, conta. Numa marcante desilusão, ela rompeu a relação. “Acabou tudo, eu fiquei doente, larguei a faculdade, não conseguia olhar para ninguém. Meu mundo desabou”, recorda-se. Na segunda viagem, para Foz do Iguaçu, o pai lhe trouxe uma boneca do Paraguai com o intuito de alegrar a filha desesperançosa. É a Lara, com um vestido vermelho, cabelos louros e uma música que toca quando uma pequena manivela é volteada em suas costas.
Fabiana e sua bolsinha de ursinho
Num álbum de retratos, Priscila reúne fotografias de algumas de suas bonecas, como Laura e Beatriz. Ao lado delas, pequenas descrições. “Natal de 2011. Scarlett”, ostenta uma página. Em outra: “Eduarda, paixão da minha vida, a filha que não tive”. Na lateral da imagem que compôs sentando uma grande boneca num vaso de plantas de casa, escreveu: “Angelina e a jabuticabeira”. A maioria delas são autenticadas e numeradas, com autoria identificada, como Rebecca e Pippa, ambas produzidas pela famosa artista alemã Hildegard Günzel. “A dona delas morava em São José dos Campos, e o marido dela era alemão. Depois do advento da internet, meu mundo abriu, e eu a conheci. Conversando comigo, ela percebeu minha paixão e fez questão de vender as duas irmãs para mim, porque queria que ficassem juntas”, relembra ela, que comprou bonecas até em leilão virtual. Helena, loira com seu vestido rosa, é um exemplo. “A maioria das bonecas compro no Mercado Livre. Um ano atrás, consegui um intercâmbio nos Estados Unidos, com o amigo de uma prima, que comprava para mim. A primeira que ele mandou foi a Diana. Tenho paixão pela Princesa Diana. Gosto de princesas, não de rainhas. As bonecas de lá são bem mais baratas. Lá basta ter a palavra usado para o preço cair”, comenta a colecionadora, que possui quatro diferentes versões da atriz Shirley Temple e a Barbie Grace Kelly. “Ela é de uma elegância e de uma beleza incríveis. Não gosto da Barbie, mas como colecionadora tenho que ter. Todas são temáticas.” Com os olhos de um verde semelhante aos detalhes da roupa que veste, carregando numa mão uma pequena sombrinha e, na outra, uma bolsinha estampada e com um ursinho fixado, esta é sua preferida. “Se me disserem que só posso ficar com uma boneca na vida, é essa aqui: Fabiana, paixão na minha vida! Uma boneca alemã. Preste atenção! Gosto tanto de verde! Olha os detalhes, não há uma coisa fora do lugar!”, suspira.
Beijoca e suas saudades
Nos porta-retratos que também se espalham pela casa, estão Gilberto e Regina, pais de Priscila. Eram do pai os objetos do tempo da escravidão, bem como os relógios e outras antiguidades. “Ele sempre me atendeu. Éramos unha e carne. Ligados na intensidade, na emoção e na nostalgia”, pontua a mulher. “Minha mãe não tinha a emoção que eu e meu pai tínhamos. Agradeço ele pelo incentivo e à minha mãe por ter cedido o espaço da casa dela. Lembro-me de sair e gostar de alguma coisa. Quando chegava, descrevia para ele, que ia na rua e comprava para mim. Sempre combinamos muito, porque gostávamos de arte, cinema, livros. Já a minha mãe tinha pavor de tudo isso. Meu pai era de Conservatória e herdou do meu avô o gosto por cultura. Meu avô trabalhava no palácio com Getúlio Vargas, gostava muito de ler, mas não era bom pai nem bom marido. Meu pai foi colocado num internato em Valença e daí começou a ler muito. Conversava com qualquer pessoa sobre qualquer coisa”, recorda-se ela sobre o bancário do qual se despediu há pouco mais de dois meses, uma semana depois do adeus à mãe. Aos 88 anos, dona Regina foi internada após uma queda. E ao longo dos mais de cem dias, o pai, 94, que estava saudável, passou mal e não resistiu. E Priscila, em sete dias, como os dois irmãos mais novos, tornou-se órfã. E mais uma vez as bonecas aqueceram-lhe o coração. “Quando estou mal, abro o armário, começo a mexer nelas e esqueço tudo o que é ruim. Amo isso. Deixei de fazer muita coisa para ter uma boneca. Meu pai me deu muitas delas”, conta, lembrando do tempo de menina, quando ganhava presentes apenas em três datas: Dia das Crianças, Natal e aniversário. “Não era muita fartura (de presentes), mas tivemos tudo. Meus irmãos tiveram velocípedes, carrinhos de pilha, bicicletas. A primeira boneca mecânica que existiu, a Beijoca, eu tive. Também tive a Amiguinha, mas não gostava, porque era muito dura. Sempre gostei, mas fui virando moça e esquecendo. A Beijoca foi a única que ficou comigo na minha transição de criança para moça. Enquanto não dei minha Beijoca, minha mãe não sossegou. Há uns seis anos, comprei outra, novinha, dentro da caixa.”
Cinderela, Christian Grey e outras marcas
Num carrinho de bebê na sala, está um bebê reborn de inquietante realidade. “Dela troco roupa de calor e de frio. Está com roupa para tirar foto. Pega e veja o peso, é como o de um bebê. Ela tem até as brotoejas dos recém-nascidos”, aponta, num misto de encantamento e emoção. É que as criaturas inanimadas, desde o rompimento do noivado, preencheram em Priscila uma ausência. Naquele tempo, após um ano longe da faculdade, a jovem formou-se em Direito e passou os dez anos seguintes bordando e fazendo crochê. “Isso tudo é arte, né, meu querido?!” Depois abriu a banca. “Eu era jornaleira. Foram 23 anos de banca. Por 15 anos, fiquei no Jardim Glória, na praça, e 8 anos, na Rodoviária. Amava a profissão. Eu gostava muito daquilo lá. A rua era muito ingrata, principalmente num bairro, onde é preciso ter cuidado com quem vai falar. Na Rodoviária, era muito bom. Entrei com tantos sonhos lá. Mas entrei na crise. Que eu saiba também fecharam outras lojas. Saí sem dever ninguém, mas saí sem nada”, lamenta ela, há um ano aposentada. A casa na Rua Constantino Paleta, onde mora há 49 anos, Priscila divide com o irmão Alexandre, as coleções e as duas vira-latas pretas Buruca e Pretinha. Após a morte dos pais, começou a se reinventar. “Agora até o silêncio é diferente”, afirma. Entre os planos da simpática mulher de cabelos grisalhos, está a ideia de gravar na pele uma homenagem aos que se foram. Mais uma para sua outra coleção: “Tem dois anos que comecei a fazer tatoo. A primeira que fiz foi essa (um coração no dedo), sou diabética, e ela era um teste para saber se tenho alergia à tinta e se cicatriza rápido. Tenho oito já. E só uso em lugares que aparecem. As que tenho estão expostas. Essa aqui (na mão) é a minha cachorra, embaixo, meu anjo da guarda. Essas outras (uma frase e um mapa) são para o Christian Grey, do livro ‘Cinquenta tons de cinza’. Mais uma de flor (no pescoço), o meu time do coração (Botafogo, no tornozelo) e a Cinderela. Todas são paixões verdadeiras. Agora vou fazer uma em homenagem a meu pai e à minha mãe. O amor deles merece. Vi que existe amor verdadeiro.”