Aos 101 anos, Mário Fernandes Meireles está em paz com o tempo
Mário conta sobre o mundo que ele viu transformar-se, passando por duas grandes guerras, e sobre um amor de quase sete décadas
Eram outros, os tempos. Tempo da Primeira Guerra Mundial, quando o Brasil rompeu as relações diplomáticas com a Alemanha e sofreu duras e mortais consequências. Tempos da Revolução Russa, das primeiras revelações de Fátima, do nascimento de John Kennedy, o 35° presidente dos Estados Unidos, e da morte de Oswaldo Cruz, o famoso sanitarista brasileiro. Tempos distantes, de tão passados, mas que Mário Fernandes Meireles faz presente, contínuo, numa carteira de identidade que revela seus 101 anos recém-completos em abril. O segredo, aponta, está justamente na longa caminhada. “Acho que é a vivência. Não bebo, não fumo, não jogo, não tenho o problema de perder noite de sono. Quando vou a uma festa, bebo um copo ou dois de cerveja, e a vida está abastecida. Já fumei quando era moleque, mas só. Cachaça, tenho dentro de casa, e só tomo quando está muito frio, antes do almoço, uma vez na vida e outra na morte.”
Pai de sete, avô de 17 e bisavô de 12, Mário foi o último a chegar e será o último a partir. “Sou o caçula da família, de 14 irmãos. Minha irmã que morreu mais velha, chegou aos 96 anos.” Filho do distrito de Paula Lima, criado na Barreira do Triunfo, ele foi testemunha de uma cidade que viu crescer conforme ia, ele mesmo, se desenvolvendo. “Se quisesse ir à cidade, tinha que ir a pé, da Barreira até Benfica, para pegar um trem até o Centro. Só fazia isso quando precisava vender ovo num botequim na cidade. Lembro que ia a cavalo até Benfica, onde dormia na casa de um irmão, que tinha uma fazenda lá. De manhã cedo pegava o trem, entregava os ovos, esperava o trem de volta e depois pegava o cavalo para chegar à Barreira. Era uma vida difícil”, lembra.
O que faz hoje? “O que o peixe faz, nada”, ri o idoso que só toma remédios para regular a pressão e para “uma coisa que, se eu levantar rápido, zonzeia”. “Só saímos quando os filhos nos pegam. Ela (a esposa) também não está boa de saúde, então não podemos sair muito. O coração já está fraco. Quando vou à missa, na esquina, meu filho vem de carro e me pega. Chego lá, e já vem um monte de gente receber a gente”, afirma o idoso, casado há 69 anos com Neusa, de 86.
Questionado sobre como foi viver esses anos todos, o centenário dá um sorriso. “Penso: será que Deus se esqueceu de mim?”, diz ele, num fino senso de humor. “Ele tem medo de morrer”, conta a esposa. “Meu problema é não poder suspirar. E se me colocam no caixão, jogam terra por cima e eu fico sufocando? Isso me dá uma aflição”, diz, aos risos. “Brincadeira. A morte é um sono. E quando a gente dorme, não sente nada, só sonha. A morte deve ser isso.”
Tempo de sol a pino
O pai mexia com fazenda. Comprava e vendia boi. Aos 12, quando se mudou para a Barreira do Triunfo, passou a vender ovos e galinhas na feira. “Como meus irmãos e meu pai sempre foram inclinados a boiadeiro, acompanhei eles”, recorda-se. Pelo grito mais alto da enxada, o garoto estudou tardiamente, quando uma professora foi enviada para lecionar na zona rural.
“Tirei o terceiro ano, mas muito mal. Eu só era bom na conta”, afirma Mário, que em 1930 avistou da janela uma tropa deslocar-se pela estrada ostentando lenços vermelhos. “Moleque, fiquei na janela da sala balançando um pano vermelho. À noite, eles acamparam ali perto. No outro dia, de manhã cedo, chegaram dois soldados armados com fuzil dizendo que o comandante pedia um boi para comer. Meu pai, muito vivo, falou: ‘Pode falar que tenho 160 bois no pasto (mas eram gados de leite) e vocês não vão morrer de fome’. Os soldados levaram o mais gordo e, chegando ao comandante, deram o recado. Ele então disse para não mexer mais com a gente. Porque quem era contra a revolução tinha que dar mais de 20 galinhas e levar descalço por uma légua e tanto”, lembra o homem que votou pela última vez ainda no século XX.
“O bom não traz cruz na testa, nem o ruim. Então, fica difícil escolher”, comenta ele, matuto. Em 1982, Mário aposentou-se como produtor rural. “Continuei mais um ano na fazenda. Tirava leite, plantava milho, criava boi, engordava gado. Essa era a minha vida. Depois a roça começou a fracassar, com esses problemas do governo. Então, vendi e vim para cá”, conta ele, que morou cerca de um ano na Rua Batista de Oliveira e há 34 anos reside numa das primeiras casas do Bairro Santa Cecília. “Quando cheguei aqui, era um loteamento, e só tinha outras três casas. Comprei duas casas e mais uns lotes até perto da igreja e coloquei meus filhos todos morando aqui.”
Tempo de armas
No ano marcado pela Intentona Comunista, Mário alistou-se no Exército. Foi dispensado. Sete anos mais tarde, porém, recebeu um chamado: precisaria juntar-se à tropa brasileira durante a Segunda Guerra Mundial. “A FEEA (Fábrica de Estojos e Espoletas de Artilharia do Exército), que fazia munição, bala de canhão para a guerra, me convocou para o serviço. Não cheguei a ir para a Itália. Foi uma sorte ter um amigo que me contou que estavam precisando de gente na fábrica. Fiquei três anos e quatro meses lá, todos os dias, das 7h às 16h. Em 1944 (no dia 7 de março), eu estava numa máquina abaixo da janela e vi uma explosão no galpão do outro lado. Só uma rua separava a Oficina 3, onde eu estava, da Oficina 4. Logo que vi o clarão, olhei para cima, e tudo começou a desabar em cima de nós. Eram 160 pessoas trabalhando na oficina em que eu trabalhava. E só tinha duas portas. Saí do pavilhão, e estava tudo escuro, com poeira. Da nossa oficina, não morreu ninguém, mas da outra, que explodiu, morreram 13”, rememora o personagem da maior e mais letal explosão ocorrida na sede local da Indústria de Material Bélico do Brasil (Imbel), onde permaneceu por três anos, até que regressou à roça, destino de suas mais felizes lembranças.
Numa fazenda em Guarará, ele conta, uniu-se a Neusa, mas voltou à Barreira, depois mudou-se para o Náutico, num sítio à beira da represa. Nessa época, o sogro convidou-lhe para ir para Sossego, distrito de Santana do Deserto, comprando a quarta parte de uma fazenda. Mário conseguiu vender tudo o que tinha em Juiz de Fora e foi embora, há 68 anos, com a esposa e o primeiro dos sete filhos, na época com apenas 8 meses de vida.
Tempo de amar e amar
Em agosto de 1948, ano em que o mundo despediu-se de Mahatma Gandhi, Mário deixou os gados por conta de um irmão para levar a mãe para Guarará, na casa de outro irmão que aniversariava. Chegando lá, foi convencido a ficar. “Meu irmão falou: ‘Vamos ver umas meninas bonitas que moram aqui!’. Entreguei os pontos. Chegando a tarde, fomos passear na casa dela (de Neusa), um fazendão. Mas ela não apareceu. Fomos embora e, no dia seguinte, chamou os vizinhos para conhecer minha mãe”, recorda-se ele, ao lado da mulher com quem escreveu os últimos 69 anos de sua vida. Os pais de Neusa aceitaram o convite para o café.
“Quando cheguei na varanda da sala, eles estavam acabando de chegar. Ela foi para o terreiro, jogar bola com meu sobrinho”, conta ele, então com 31 anos, e ela, com 16. “Meu pai dizia que ele parecia ser boa gente, mas era uma pena eu ser tão menina”, lembra Neusa. Naquele café, trocaram algumas palavras apenas. “Falei com a minha cunhada: ‘Se essa menina topar, caso com ela’. Ela disse que falaria com ela”, traz à memória Mário, que começou, no mês seguinte, a trocar cartas com a amada. Em outubro, se encontraram na festa onde Neusa vestia-se como filha de Maria, com véu sobre o rosto. “Fiquei procurando ela. Andava no meio da procissão até que ela mexeu no véu, e eu a encontrei. Quando saímos da igreja, o pai dela veio falar com a gente, e eu acabei não falando com ela. Estávamos conversando por cartas, só. Não tinha nada desrespeitoso, eu era firme nas palavras. Em dezembro, meu irmão veio na Barreira, e eu fui com ele”, conta.
O irmão foi quem pediu a mão de Neusa ao pai. Pedido aceito, a festa de noivado aconteceu no aniversário do futuro sogro de Mário. O casal se encontrou nos sete meses seguintes, e a união aconteceu em setembro de 1949. Enquanto puxa pela memória os detalhes de todos os encontros com a mulher amada, Mário é observado por olhos encantados. Passados quase 70 anos, como é o amor? “Toda a vida foi o mesmo”, ele diz. Ela sorri. “A despedida de um será a despedida do outro. É uma vida juntos.”