Projeto valoriza a autoestima das mulheres pela fotografia
Maquiadora e fotógrafo criam projeto no qual buscam valorizar o que há de melhor em cada mulher cujo estilo e característica fogem dos padrões das modelos tradicionais que a sociedade se acostumou a ver
Quem nunca se olhou no espelho e pelo menos uma vez na vida desejou ser diferente do que é? A maquiadora Letícia Miranda do Carmo, 19 anos, não conseguia enxergar nela as características que julgava importantes para se sentir bonita. Sonhava em ser como as meninas famosas que seguia nas redes sociais, bem sucedida e até rica. O que no começo parecia apenas um comportamento adolescente frente aos ídolos que admirava se tornou sinônimo de tristeza e adoecimento. Para piorar, a ansiedade diante de padrões de beleza inalcançáveis para a maioria das mulheres, a dificuldade financeira da família e a perda de um ente querido levaram a jovem a ganhar 17kg, resultando em um quadro grave de depressão. O sofrimento, porém, trouxe maturidade inesperada para Letícia que encontrou na própria internet exemplos de superação capazes de fazê-la valorizar quem ela era. Foi olhando para si mesma com aceitação que a jovem deu vida a um projeto que fala muito sobre todas nós. Em parceria com o fotógrafo Dênis Saramelo, criou o “Bonita é ser como sou”, um trabalho que realça o que há de melhor em cada uma e que tem ajudado a resgatar, através da maquiagem e da fotografia, a autoestima de meninas maravilhosamente imperfeitas, cujo estilo e característica fogem completamente aos das modelos tradicionais que a sociedade se acostumou a ver.
Submetida a uma cirurgia de amputação de parte da perna direita há quase cinco meses, Cláudia Aparecida de Assis, 36 anos, posou essa semana para as lentes de Dênis. Convidada a participar do projeto, ela nunca tinha feito um ensaio antes. Foi no salão modesto da mãe de Letícia, localizado no Bairro Santa Terezinha, que a designer de jóias de unha começou a preparação para um dia muito especial. Inicialmente envergonhada diante do trabalho registrado também em vídeo, que gravaria todo o bastidor da produção, Cláudia teve os olhos claros destacados pela make de Letícia.
Ao levantar-se da cadeira preta, onde foi maquiada, ela já exibia uma postura diferente. Sentia-se confiante, disposta a revelar-se, com coragem suficiente para contar sua história. “Nasci uma criança ‘normal’ e, aos 5 anos, minha perna começou a se atrofiar do joelho para baixo. Fiquei sete meses em tratamento no Rio, onde constataram que eu tinha um tumor benigno na perna. No entanto, até hoje, nenhum médico sabe, de fato, o que aconteceu comigo. Com o tempo, minha perna foi se atrofiando até virar totalmente para trás. Fiquei assim dos 6 aos 36 anos, e foi muito difícil. Os nervos foram encolhendo, e eu sentava em cima do meu pé. Com isso, várias partes do meu corpo foram afetadas. Meu quadril, minhas costas, que tem um lado maior do que o outro, e quanto mais eu ia envelhecendo, mais as dores pioravam. Cheguei a ouvir de um médico que aos 40 anos eu não andaria mais. A única solução era a amputação do membro, pois meu joelho estava totalmente comprometido”, afirma Cláudia, operada no último dia 29 de junho.
Apesar de a intervenção ter sido bem sucedida, Cláudia sentiu e ainda sente muitas dores, inclusive no membro amputado. A dor do membro fantasma, como a medicina se refere a casos como o da designer, é considerada uma das síndromes clínicas mais complexas. Mesmo diante das dificuldades, Cláudia, que é mãe de um adolescente de 13 anos, disse que a operação foi a melhor coisa que aconteceu na vida dela. “Melhorou a minha qualidade de vida para dormir, sentar, mudou a minha postura, tudo melhorou. Por isso, não senti o baque de não ter mais a minha perna. Graças a Deus, não sinto falta dela.”
Nova imagem
O estado de espírito de Cláudia se refletiu nas imagens tiradas por Dênis. Usando short, a designer não demonstrou problema em mostrar sua nova imagem. “Até os meus 15 anos, eu tinha vergonha de sair na rua, não ia numa festa, não ia a lugar nenhum. Comecei a frequentar escola com 14 anos, sendo alfabetizada em casa. Hoje, no entanto, não me vejo como uma pessoa deficiente, mas eficiente. Embora eu tenha todos os meus obstáculos, sempre fiz tudo que tinha vontade de fazer, sempre fui uma pessoa muito prestativa, capaz de ajudar os outros”, diz, deixando escapar seu principal sonho: conseguir uma prótese.
Sobre seu primeiro contato com o projeto “Bonita é ser como sou”, Cláudia conta que foi marcada por uma amiga no Facebook. “Eu assisti ao vídeo de uma menina que luta contra o câncer e, logo em seguida, a Letícia entrou em contato comigo. Fiquei muito feliz, porque, através da vida da gente, nós podemos ajudar pessoas que estão passando por algum problema e que acham que não tem mais solução. Tem jeito para tudo. Por isso esse projeto é tão bonito. Eles estão sendo muito profissionais e mostrando ter um coração enorme ao disponibilizar esse tempo para as pessoas iguais a mim. Estou me achando”, afirma, aos risos.
“Amo meu cabelo”
Carol Guedes, 23 anos, recebeu com desconfiança o convite para participar do “Bonita é ser como sou”. Ela conta que já tinha visto e compartilhado no Facebook o vídeo de Natália, vítima de câncer, mas que não associou o fotógrafo Dênis, que conheceu em uma festa infantil, a um dos idealizadores do projeto. Foi um garçom que não conhecia nenhum dos dois que os aproximou durante o evento no qual Dênis tinha sido contratado para fotografar. Admirado com a presença forte de Carol, o garçom disse para ela que deveria ser modelo e que o “fotógrafo” da festa podia confirmar essa impressão. Ao descobrir a história da jovem, Dênis viu um exemplo que precisava se tornar público.
Negra, Carol foi adotada com a irmã gêmea aos dois dias de vida por uma família branca. Rodeada de afeto, somente aos 9 anos é que ela percebeu que sua cor era diferente da de sua mãe e seu cabelo também. “Quando minha mãe saía para passear comigo e minha irmã, os outros perguntavam: mas por que elas são morenas, têm cabelo ruim e você tem cabelo bom? Foi quando eu disse para a mãe: quero alisar meu cabelo, quero que ele seja igual ao seu. Desde então, comecei a alisar meu cabelo e entrar nessa ditadura de que mulher bonita é aquela com cabelo longo e liso. Demorei a perceber que a mulher é bonita do jeito que ela quiser ser e que não depende da química para isso”, diz Carol, poucos meses depois de ter concluído a sua transição capilar com o chamado big shop, o grande corte.
O processo de transição capilar iniciou-se há cerca de um ano, quando Carol começou a pesquisar sobre o tema, decidindo que não usaria mais nenhum tipo de química no cabelo que, naquela ocasião, estava na altura dos ombros. Primeiro, ela fez um corte chanel na altura do queixo. Em julho deste ano, passou pelo big shop, quando raspou o cabelo, a fim de que crescesse de maneira natural. “Quando eu cortei, foi difícil para mim, porque todo mundo olhava e dizia: nossa, coitada. O cabelo acaba sendo a segunda pele da mulher. Na hora que me vi sem ele, parecia que faltava um pedaço de mim. Hoje não tenho arrependimento nenhum, mas fiquei um mês chorando ao me olhar no espelho todo dia de manhã.”
Carol lembra que foi de sua mãe a melhor reação: “Agora você vai ficar bonita do jeito que realmente é.” A mudança de sua imagem contou com desafios. “A sociedade tem aquele negócio de te rotular e não perguntar por que decidi fazer a transição capilar. Foi difícil conhecer meu cabelo real. Na hora que ele resolveu ser a savana que realmente é, senti o primeiro impacto. Mas descobri que meu cabelo não é duro nada, apenas cacheado. Hoje brinco com as minhas clientes e digo para elas: libere a savana que existe dentro de você, porque isso é libertador”, diverte-se.
Segura da sua beleza, ela afirma ter descoberto muito mais sobre si mesma. “Descobri que eu posso usar um acessório, porque fico mais feminina, que posso usar batom, encontrei minha beleza. E hoje posso dizer: eu amo o meu cabelo”, diz, dando uma gargalhada.
Idealizadores do projeto têm histórias de superação
Emocionada com os depoimentos das participantes do projeto, a maquiadora Letícia Miranda do Carmo admite que jamais imaginou que a iniciativa alcançaria tamanha dimensão. “Foi um projeto que surgiu este ano no meu coração, e o Dênis super abraçou, só que não imaginava que tomaria essa proporção. A gente está muito feliz com o resultado. Eu falo que o projeto nasceu para mim, pois ao ver outras mulheres que se aceitam, passei a me aceitar também. Além de ajudar outras pessoas, antes de qualquer outra coisa, ele me mostrou que bonita é ser como somos. Antes, eu tentava com a maquiagem fazer a transformação das mulheres, mas aprendi com pessoas que já se amam do jeito que são a apenas realçar a beleza que elas já têm. Além disso, vi que posso usar a maquiagem para fazer o bem”, diz Letícia, que há um ano é maquiadora profissional.
Foi a tia e a madrinha dela que ajudaram a jovem a fazer o curso e a comprar os primeiros produtos aos 18 anos de idade. Antes disso, Letícia ganhou da mãe, manicure, como presente de 15 anos, a maleta com a qual trabalha. “Minha mãe juntou dinheiro e comprou uma maleta para mim. As amigas dela doaram maquiagens usadas, muitos batons já no finalzinho. Tinha base que nem era da minha cor, porém eu me apaixonei ainda mais pela maquiagem. Quando terminei o curso, ano passado, minha mãe tinha acabado de comprar o salão em que estamos hoje. Antes, ela era funcionária de um salão lá no Centro”, ressalta Letícia.
Parceiro da maquiadora na idealização desta ação, o fotógrafo Dênis Saramelo, 36 anos, também exibe uma história de superação. Há cerca de cinco anos, ele trabalhava no comércio e, ao lado da esposa, fazia shows de mágica nos finais de semana para reforçar o orçamento doméstico. Quando a mulher engravidou, no entanto, ele se viu obrigado a procurar uma nova ocupação. Já gostava da fotografia e resolveu trocar a câmara semiprofissional por uma profissional. De lá para cá, não parou mais de fotografar e hoje se especializou em fotografia infantil.
Foi pensando na carreira que Dênis resolveu propor a Letícia uma parceria profissional. Ela aceitou o desafio, mas sugeriu, no entanto, transformar a ideia em um projeto social. Queria maquiar meninas diferentes, loiras, ruivas, acima do peso. O fotógrafo topou na hora e acrescentou mulheres fora do padrão ideal. Assim surgiu a primeira modelo, uma vítima de câncer que está careca por causa da quimioterapia. “Foi um desafio muito grande fotografar uma modelo sem cabelo, porque geralmente a gente pede para a menina mexer no cabelo, e ela não tinha essa parte para realçar. Mas o ensaio ficou muito bonito, e ela também ficou muito satisfeita com o resultado. Antes do projeto, ela não deixava ninguém fotografá-la. Cancelou suas redes socais, porque não queria que ninguém a visse careca. Agora está sendo vista por todos. Apareceu no vídeo com um sorriso contagiante. Depois disso, já a encontrei na rua sem peruca, sem lenço, andando normalmente”, comemora Dênis, que diz ter aprendido valores de vida. “Muitas meninas com características especiais não percebem o quanto são bonitas. Elas saem do ensaio com a autoestima restaurada.”