Escritores de sucesso do mercado digital ganham força
E chegam a livrarias e feiras como a Bienal do Rio, ditando caminhos para o livro físico
O Fla x Flu literário coloca em lados opostos o que é comercial e o que é experiência intelectual. Quando são considerados os e-books, contudo, a rivalidade entre “boa literatura” e “literatura popular” torna-se ainda mais simplista e rasa. Com um catálogo de mais de cinco milhões de títulos em sua estante virtual, a Amazon, uma das gigantes do setor, faz complexa uma equação até então compreendida sob as óticas do mercado e da academia. Como a conformar um universo paralelo, os e-books se sofisticaram à margem da grande mídia e das limitadas e limitantes listas de mais vendidos – resultado de um somatório simples das vendas das maiores livrarias do país.
Divulgado na última quarta-feira, 23, o Censo do Livro Digital, realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) para a Câmara Brasileira de Livros (CBL) em parceria com o Sindicato Nacional dos Editores de Livro (Snel) revela que em 2016 foram comercializados 2,7 milhões de e-books no Brasil, com um faturamento anual de R$ 34 milhões, o que representa apenas 1% dos recursos gerados por todo o mercado editorial brasileiro. Com preços baixos ou até mesmo praticando a gratuidade e o formato de assinaturas mensais, os livros digitais não foram capazes de impactar a economia da cultura, mas são capazes de ditar caminhos para o livro físico.
Professora de língua portuguesa em Juiz de Fora e em Bicas, Amanda Marques afastou-se das salas de aula quando engravidou e decidiu seguir o marido em suas andanças profissionais. “Como não costumamos ficar mais de um ano na mesma cidade e ainda com uma criança pequena para cuidar, cada vez sentia que se tornava mais inviável voltar ao mercado de trabalho formal. Ao mesmo tempo, me sentia insatisfeita, frustrada por ter estudado tanto e sentir que havia abandonado minha profissão. A escrita veio como uma forma prazerosa de ainda estar na área que amo, conciliando meu trabalho com a vida na estrada”, conta a autora de “Minha intenção”, que após tornar-se um sucesso nas plataformas on-line, ganhou as páginas de papel.
Uma das escritoras presentes na XVIII Bienal Internacional do Livro do Rio, que acontece entre os dias 31 de agosto e 10 de setembro, no RioCentro, a juiz-forana que hoje reside em Paranavaí, no Paraná, lança seu segundo título, “Não resisto” (Autografia Editora), também em formato digital e físico. “São histórias com o objetivo de entreter, divertir o leitor, mas digo que não são simplórias, pois há um grande esforço na construção de um enredo coerente e bem estruturado. Escrevo romance moderno, com grande preocupação em criar protagonistas com que as leitoras se identifiquem, mulheres fortes e independentes e que dentro deste contexto ainda tenham o lado romântico e aventureiro”, ressalta Amanda.
Os best-sellers invisíveis ao establishment
Primeiro lugar na lista dos e-books mais vendidos da Amazon desde que foi lançado, no último dia 20, “Espera-me acordada” parece repetir o sucesso do anterior, “Dom”, por mais de três semanas em primeiro lugar no mesmo ranking e com mais de três milhões de leituras on-line desde seu lançamento, há pouco mais de um mês. Os dois best-sellers levam consigo a assinatura de Anne Marck e nada mais. Enquanto o primeiro possui 112 páginas em 477 kilobytes, o segundo possui 337 páginas compactadas em 1.655 kilobytes. Nenhuma editora. “O número expressivo de usuários das plataformas de leituras digitais (pagas ou não) corrobora a ideia de que a literatura está se tornando popular, apesar da falta de hábito da maior parte da população, o que é cultural no país. E são escritores – em sua maioria independentes – e editoras menores que estão movimentando este mercado”, pontua Anne.
Recusando o ressentimento de não pertencer a qualquer listagem dos livros mais vendidos no país, que coloca em primeiro lugar títulos com vendas na casa dos dois ou três mil exemplares vendidos, a escritora curitibana, formada em administração pela PUC-PR e empregada como gerente de projetos, tem dez livros escritos e apenas três autopublicados. Invisível ao establishment, ela se relaciona frontalmente com seus leitores. Está sempre on-line. Está sempre escrevendo. “Estou no Wattpad desde 2014, porém, somente no início de 2016, comecei a postar meus livros na plataforma”, conta ela, referindo-se a uma das maiores comunidades de leitores e escritores, com mais de 55 milhões de inscritos no mundo e mais de 375 milhões de histórias disponíveis.
“No começo, eu publicava bem timidamente, peguei um livro já completo, de uma série de quatro livros que eu pretendia escrever (a série ‘Renda-se’), e passei a postar semanalmente. Lembro que havia cerca de 30 leituras por capítulo, quase nenhum comentário ou voto (ferramentas disponíveis para o envolvimento do leitor), e então, organicamente – sem que eu me desse conta exatamente de quando, mas muito rápido -, passei a receber nove mil visualizações por capítulo. Ali eu me encontrei enquanto escritora. O feedback instantâneo do público, o engajamento com a história, as emoções transmitidas, me serviram de termômetro para a construção dos outros livros que estava escrevendo”, relata Anne, que hoje publica, “simultaneamente ao processo de escrita”, dois capítulos por semana.
O peso do papel
A popularidade e o alcance do trabalho de Anne resultou no convite de uma editora de Campinas para publicar sua série “Renda-se”. “É claro que ter meu livro físico em mãos foi uma emoção única. Um sonho materializado. Mas nem tudo são flores neste mercado, e o autor é o ponto mais sensível da corda”, critica ela, certa do valor da autopublicação. Prova da influência do universo on-line sobre o mercado editorial de livros físicos são os prêmios literários que já se voltam para o formato de e-books. Na última edição do tradicional Prêmio Jabuti, foi incluída a categoria “Escolha do Leitor na Amazon.com.br”, que consagrou Marcelo Rubens Paiva e seu “Ainda estou aqui” (Alfaguara). Em sua segunda edição, o Prêmio Kindle de Literatura recebe inscrições de e-books até o dia 31 de outubro, tendo como prêmio a publicação física, além de R$ 20 mil.
A migração do universo on-line para o espaço físico é visível nas prateleiras que Ângela Lopes organiza em sua Livraria Ca D’Ori, no Centro da cidade. Segundo a livreira, há uma crescente presença de livros, publicados em sua maioria por pequenas editoras, de autores influentes no meio digital, cujos leitores, fiéis, aguardam com ansiedade os lançamentos. “Antes a gente lia o que o mercado oferecia. Hoje são os leitores que definem o mercado”, comenta a livreira, destacando que “não quer dizer que todos repetem o sucesso virtual no formato físico”.
Segundo Ângela, os e-books não impactam o consumo do livro físico, mas o comércio digital, que alcança uma celeridade que o contato físico e as pequenas livrarias não dão conta de acompanhar. A mesma justificativa para a manutenção das pequenas casas de comércio de livros serve à migração das histórias, que partem da tela para o papel. “Ainda há um movimento de pessoas que dizem precisar do objeto. Há um cheiro. Cada livro tem seu cheiro, seu toque. Há a memória, o encontro”, defende a livreira.
A relatividade dos termos
Com 11 títulos publicados em formato digital, o escritor Iacyr Anderson Freitas “alimentava uma arrelia com os e-books”, até ganhar dois leitores digitais dos filhos. “Como todo preconceito é burro, percebi que o negócio é genial para alguns tipos de obra”, diz ele, destacando o “alguns”. “Sinto falta de um certo critério editorial, que possa olhar para algumas obras e valorizá-las. É exatamente um sistema de autopublicação. E o autor é que tem que divulgar. São muitos títulos dentro de uma livraria dessas e, se não tiver um trabalho de difusão, o livro fica perdido. Por sorte, o ‘Mirante’ ficou entre os mais vendidos quando foi lançado. Há uma visibilidade, mas é passageira”, aponta Iacyr, certo de que a web carrega consigo dilemas muito semelhantes aos do meio físico, como a prevalência de certos temas.
“Vejo certa permanência daquilo que chamávamos de literatura ‘sentimentalóide’, oferecida às mulheres, com títulos como ‘Apaixonei-me pelo meu chefe’ ou ‘Meu príncipe é meu vizinho’. Apesar de não ter lido esses livros, é uma literatura que remete àquela feita no início do século XX, com muitos clichês. É uma plataforma das mais modernas, com recursos infindáveis e, no entanto, serve a nenhum aspecto literário”, critica Iacyr, chamando atenção, no entanto, para o caráter “iniciático” desses títulos.
“Posso ler Pedro Nava e Carina Rissi. Por que não? Pelo que tenho observado, as plataformas de leitura digital têm um acervo bastante diversificado. Há pouco tempo, comprei num mesmo dia, numa livraria digital, ‘Um copo de cólera’, do Raduan Nassar, e um romance chamado ‘Cake’s Helô’, de Julie Lopo”, reflete a professora e escritora Amanda Marques. Para a livreira Ângela Lopes, a predominância de mulheres autoras na rede aponta para questões sociais profundas. “Ainda existem os tabus. Por mais que ’50 tons de cinza’ tenha aberto portas, ainda há portas para serem abertas”, comenta, citando os grupos que se formam na web a fim de fortalecer produções que definem o que seria a mulher do novo século.
De volta ao campo o Fla x Flu, mais complexo quando acrescido dos algoritmos da internet, mas com torcidas inflamadas e uma energia própria das grandes disputas. “É lamentável o autor que se orgulha de não ser lido, satisfeito em se comunicar apenas com a sua patota. O escritor deve sempre considerar seu leitor (e, com isso, não quero dizer que o escritor deve fazer concessões em seu texto)”, inflamou o campeonato o escritor Raphael Montes, em sua coluna de “O Globo” do dia 17 de julho deste ano. Bem recebido nas prateleiras, considerado um dos mais jovens autores best-sellers do país, Raphael equilibra-se na corda-bamba que separa o “cult” do “pop”. Concluindo a polêmica levantada em campo aberto, o também escritor Santiago Nazarian, em seu blog, aponta para a relatividade de um jogo que não se faz entre duas distantes traves, mas no campo sutil das palavras: “Para mim, a literatura será sempre o trunfo do indivíduo, em que posso comunicar um universo particular a quem possa interessar”.