Corra (!) que a patrulha vem aĆ
Pode ser o passar dos anos, minha impaciĆŖncia de berƧo ou mesmo uma longa e prolongada TPM, mas tenho achado as pessoas cada vez mais chatas, e em diversas categorias. De acordo com uma de minhas inĆŗteis teorias, o maior problema do malaĀ Ć© desconhecer que o Ć©, porque ninguĆ©m tem a coragem de ser o portador da (mĆ”) notĆcia. Aceitando as consequĆŖncias do ofĆcio, mas preferindo nĆ£o perder a piada, desabafo aqui sobre um tipo que tem me perturbado bastante: a patrulha do fitness. Vejam bem, tenho absolutamente nada contra adotar um estilo de vida saudĆ”vel, comer bem, exercitar-se e, sim, divulgar isso nas redes sociais, que sĆ£o um reflexo de nossa vida pessoal – ainda que o mais feliz, viajado, bonito e descolado dela. Eu mesma, recĆ©m matriculada uma academia mais uma vez na vida (agora vai!), incorporo isso Ć minha vida on-line, e atĆ© troco receitinhas saudĆ”veis na rede. Mas muito mais na internet do que na vida, hĆ” um limite tĆŖnue entre o cotidiano de fato e sua encenaĆ§Ć£o.
Eu vejo gente saudĆ”vel. Com que frequĆŖncia? O tempo todo. Algumas pessoas chegam a exagerar tanto que parecem contas temĆ”ticas nas redes sociais, resumidas a atividade fĆsica e comida light/fit/funcional/o quer que seja. Nas timelines, hĆ” profusƵes de fotos de agachamentos pouco honrosos, print screens de aplicativos que mostram a quilometragem da “#corridinha top” de cada dia e imagens de gororobas indecifrĆ”veis Ć base de whey, goji-berry ou o suplemento natural ou sintĆ©tico do momento – Ā que nem sĆ£o problemas por si sĆ³.
O que realmente me preocupa Ć© que essa apologia ao fitness normalmente vem acompanhada de um autoflagelo. De imagens de brigadeiros, picanhas, coxinhas (e mesmo pecados gastronĆ“micos mais rasos, como um modesto pĆ£ozinho francĆŖs) sempre acompanhadas por legendas ou hashtags autodepreciativas, como #gordice, #vaigordinha, #jacando (que deriva da expressĆ£o ‘enfiar o pĆ© na jaca’) e a inaceitĆ”vel para quem, como eu, leva comida a sĆ©rio, #diadolixo. FaƧam-me o favor! O dia em que eu usar “lixo” e “brigadeiro” na mesma frase vai ser, com certeza, dizendo que estive “igual pinto no lixo” comendo o docinho mais querido do Brasil.
Mais triste ainda, alĆ©m desta autodepreciaĆ§Ć£o, Ć© pensar que muitas destas atitudes alimentam (aproveitando o duplo sentido) distĆŗrbios alimentares e psicolĆ³gicos que podem ter consequĆŖncias extremas. Quantas adolescentes se escondem atrĆ”s de um #vaigordinha aparentemente inofensivo para lanƧarem o dedo na goela apĆ³s as refeiƧƵes? Quantos gordinhos com taxas de coleterol, triglicĆ©rides e o diabo a quatroĀ muito melhores que as de pessoas magras sentem-se humilhadas ao ouvirem “VocĆŖ bem que podia emagrecer”, mesmo estando com a saĆŗde em dia? Quantos travestem sua obsessĆ£o com um corpo perfeito, como dita a mĆdia, sob a dor real e diĆ”ria do ‘no pain, no gain?’ Quantas pessoas como eu e vocĆŖ deixam, diariamente, de ceder a pequenos prazeres da vida por medo do julgamento alheio?
Vamos nos cuidar, sim: fazer exercĆcios, controlar a alimentaĆ§Ć£o, ter mais saĆŗde e qualidade de vida. Mas nĆ£o sejamos chatos, nem inescrupulosos. Que tenham o fim dos olhares tortos para os sorvetes! Chega de crucificar a cervejinha e o petisco do happy hour! Abaixo a fixaĆ§Ć£o pela barriga negativa! Free glĆŗten! (para os nĆ£o celĆacos, claro).Ā Eu mesma outro dia, debaixo de um calor miserĆ”vel que nem vestidinho de verĆ£o resolvia, pensei duas vezes antes de me render a um picolĆ©. JĆ” imaginava a voz da patrulha, por minhas costas: “LĆ” vai a gordinha fazendo gordice”. Mais uma vez, o passar dos anos pode ter sido libertador, e por estar velha demais para me importar, rebelei-me contra o ‘vigiar e punir’ e comprei um Chicabon (porque picolĆ© de limĆ£o nĆ£o Ć© transgressĆ£o). Imediatamente, comecei a sentir um frescor quase fĆsico, um alento surpreendentemente instantĆ¢neo para o sol que rachava em minha moleira, e pensei no quĆ£o besta seria abrir mĆ£o daquele prazer.
AtĆ© que uma senhorinha me cutucou e jĆ” me vireiĀ pensando: “Chegou a vigilĆ¢ncia”.
-MoƧa?
-Sim?
Ao que ela respondeu, apontando meu vestidinho agarrado na bolsa, em bom “senhorinhĆŖs”:
– Sua nĆ”dega estĆ” aparecendo.