Religião e a preocupação com o social
As religiões, historicamente, fizeram parte das ideologias de dominação. É notável quando elas se empenham no sentido contrário… Nas últimas décadas, duas dessas posturas atraíram amplamente as atenções: a teologia da libertação cristã e o fundamentalismo islâmico.
Enquanto a teologia da libertação seguiu de braços dados com a chamada esquerda laica na América Latina, o fundamentalismo islâmico desenvolveu-se nos países de maioria muçulmana, sobretudo como um concorrente. Ambos os movimentos históricos são vozes contra a “pobreza real” e seus causadores, mas com correlações opostas – positiva no primeiro caso, negativa no segundo -, o que reflete uma profunda diferença entre os dois.
A teologia da libertação é a manifestação moderna da “afinidade eletiva” entre cristianismo e socialismo, tal como herança da utopia de uma sociedade mais igualitária e solidária, surgida no cristianismo primitivo. Não se trata tanto de uma nostalgia pelas formas de vida comunitárias do passado, mas de aspirações pela libertação do pobre que a aproximava daquelas sustentadas pelos revolucionários latino-americanos.
O fundamentalismo islâmico, pelo contrário, cresceu sobre a falência do movimento progressista, paralelamente à expansão das forças reacionárias que usam o islã como bandeira ideológica nos países de maioria muçulmana, atiçando as chamas de fundamentalismo para sufocar aspiração mais solidária. Desta forma, o fundamentalismo islâmico não demorou a tornar-se a principal oposição à dominação ocidental, dedicando-se a um projeto de sociedade imaginário e mítico, que não está voltado para o futuro, mas para o passado, querendo restabelecer a sociedade e o Estado mitificado do islã primordial.
Reconhecer essas características é uma das chaves para entender os diferentes usos históricos de cada religião como bandeira de protesto; permite compreender por que a teologia da libertação cristã conseguiu tornar-se um importante componente da esquerda na América Latina e também ajuda a entender por que o fundamentalismo islâmico conseguiu ganhar a enorme importância que tem hoje nas comunidades muçulmanas e por que tão facilmente suplantou a esquerda para encarnar a recusa à dominação ocidental.
No entanto, a batalha ideológica contra o fundamentalismo islâmico deve continuar sendo uma das prioridades dos progressistas no interior das comunidades muçulmanas. Em compensação, poucas objeções podem ser feitas às ideias sociais, morais e políticas próprias da teologia da libertação cristã.
Adaptado do texto “A religião pode servir ao progresso social?”, de Gilbert Achcar para a revista “Le Monde Diplomatique”, nº 97.
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