Sem excelência e sem mordomias
Nos primeiros dias do ano, a corpulenta pilha de livros não lidos que se amontoam sobre a escrivaninha de meu quarto perdeu alguns centímetros. De forma aleatória, selecionei a primeira leitura de 2016: um exemplar cujo título é o inverossímil “Um país sem excelências e mordomias”. À primeira vista, o palpite mais inequívoco era de que se tratava de uma fábula ou uma ficção de contornos kafkianos.
Mas o país – pasmem! – existe. A obra da jornalista Claudia Vallin debruça-se sobre o sistema político da Suécia, uma das hastes do restrito rol de nações que se converteram em parâmetro máximo para a certificação da nossa miudeza latina. Atestá-la, aliás, não é um caso de complexo de vira-latas – espécie de patologia cunhada por Nelson Rodrigues para designar a baixa autoestima sobre a qual erguemos nossa ufania, acuados pela opulência d’outras terras -, mas o reconhecimento do abismo moral e civilizatório que nos distancia, muito além das milhas marítimas.
Do lado de lá, as “vossas excelências” brasileiras seriam, por lei, simples “vocês” – os suecos conservam a forte crença de que homens públicos e cidadãos devem estar no mesmo patamar de igualdade, tendo sido abolidos os pronomes de tratamento que sugerem divisões hierárquicas. Em suma, representantes de cidadãos comuns devem ser cidadãos igualmente comuns, nivelamento que permite aos eleitos preservar sua sensibilidade às carências da sociedade.
Assim, deputados, bem como o primeiro-ministro, lavam e passam suas roupas, atendem os próprios telefones, deslocam-se por meio do transporte público e pagam suas contas sem o aporte de verbas extras. Não há assessores, secretárias, carrões, gabinetes luxuosos, motoristas, escolta pessoal ou residências oficiais de dimensões hollywoodianas. Lá, prevalece a cultura de que não existe ninguém mais apto a colocar a mão na massa do que o próprio interessado no feito.
Parlamentares de regiões afastadas têm direito a apartamentos que fariam nossas quitinetes parecerem extravagantes palácios. Para eles, hospedar algum parente, ainda que sem ônus aos cofres públicos, resulta em débitos mensais para recompensar o Estado pelas “diárias”. Membros do Judiciário, incluídos os da Suprema Corte, compartilham do mesmo rechaço ao que é dispensável. A gastança e o glamour são estranhos aos olhos dos suecos; aos nossos, exótico é o repúdio àquilo com o que naturalmente consentimos.
Mares repletos de rosas, contudo, têm lá seus fundos falsos: os rendimentos de um parlamentar sueco representam o dobro do que recebe um professor primário, o bastante para inquietar os ânimos dos eleitores e conduzi-los a uma pertinente antipatia pelos seus representantes. Mal sabem eles que, em terras tupiniquins, a proporção pode chegar a nada módicos 30. O choque de culturas segue repugnante mesmo quando a relação de proventos se inverte: lá, vereadores nem sequer recebem salários.
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